Hospital das Forças Armadas: "Parecem astronautas. Só se vê os olhos, infelizmente"
Hospital das Forças Armadas do Porto dá apoio psiquiátrico e psicológico a utentes de lares com covid-19 que são ali internados.
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"Parecem astronautas. Só se vê os olhos, infelizmente. Mas pela voz também vamos lá". O sorriso de Ana também só se percebe pelos contornos dos olhos, que encolhem na expressão da alegria possível para quem está internada há quase dois meses. E pelo riso tímido abafado pela máscara que lhe apaga metade do rosto.
"No princípio, foi uma surpresa" ser cuidada por médicos e enfermeiros vestidos de branco da cabeça aos pés, rostos indecifráveis e nem um milímetro de pele exposto; só aquele fato do outro mundo, sem perceber bem o porquê daquela parafernália quase espacial.
Mas o "princípio" já se diluiu na linha do tempo de Ana, 75 anos e positiva para covid-19 desde março, mês em que saiu de um lar em Vila Real com destino ao polo do Porto do Hospital das Forças Armadas, de onde quer "sair curada".
"Já lhe perdi a conta", torna a rir. Mas não deixou passar o aniversário do mais novo dos seis netos, que completou 13 anos na passada segunda-feira. Deu-lhe os parabéns de viva voz, "ah, pois!", e graças à ajuda de uma enfermeira que fez a ponte com as tecnologias de videochamada, para que pudesse ver e falar com o rapaz.
Intervenção em crise
O acompanhamento psicológico e psiquiátrico vai tentando equilibrar o tumulto de uma nova realidade, que surge desordenada na cabeça dos que sofrem de demência. E muitos seniores nessas condições deram entrada no Hospital das Forças Armadas, que havia criado o Grupo de Intervenção em Crise, uma célula vocacionada para a resposta na área da saúde mental durante a pandemia. Alguns dos internados acabariam por ter surtos. "São idosos com muitas comorbidades e demências, que saem dos lares e são recebidos por pessoas que parecem astronautas. Acaba por haver agitação, e as equipas de psiquiatras e psicólogos entram logo", aponta ao JN o coronel médico António Moura, subdiretor do hospital militar.
"Numa fase inicial, sempre que os abordamos explicamos que está tudo bem e dizemos que estamos aqui para ajudar. Tentamos passar a barreira do fato", sublinha a major médica Paula Janeira, que é responsável pelo internamento de utentes com covid e que destaca o "trabalho em equipa", em que "muitas vezes são os enfermeiros que alertam os médicos" sobre o estado psicológico dos doentes.
"Uma grande família"
"As alterações das rotinas, da dinâmica, do ambiente e dos cuidadores agravam o estado de pessoas que já têm pouca reserva cognitiva e que se servem de referências muito bem marcadas para se orientarem no dia a dia. Perdendo-as, desenvolvem comportamentos agressivos", nota o major médico Telmo Coelho, que dirige o Serviço de Psiquiatria e fala no impacto dos profissionais "mascarados com fatos, que geram desconfiança porque [as pessoas com demência] não sabem quem está ali".
Apesar de irreconhecíveis, as enfermeiras "são muito boas". Ana está do outro lado da linha amarela, a "zona suja", porque o indomável coronavírus é o invasor que vive ali, e ainda não existem armas para combater esse inimigo invisível.
vencer barreiras
Aquela fita colada no chão é como uma barricada entre dois mundos: o dos negativos e o dos positivos. A covid ergue muros e semeia temores, e quem cuida tenta a todo o custo vencer as barreiras físicas impostas pela contagiosidade do vírus: mesmo com o corpo entrincheirado num fato há sempre uma mão - ainda que o toque seja de plástico - que se dá a outra, ou que se estende num amparo, que acalma e acaricia.
"O tratamento é personalizado. Chamamos os doentes pelos nomes, o que ajuda a que se sintam mais em casa e ganhem referências, dado que a mudança não foi fácil para a maior parte deles, por já terem quadros demenciais instalados. Sentirem que isto é uma grande família ajuda-os", observa o psiquiatra.
Utentes de três lares
Na terça-feira, o Hospital das Forças Armadas do Porto tinha internados 13 idosos infetados com covid-19, oriundos de lares das zonas de Vila Real, Famalicão e Albergaria-a-Velha.
Mais 20 internados
Na quinta-feira, deram entrada 20 idosos provenientes do Lar do Comércio, em Matosinhos, subindo para 86 os utentes de estruturas residenciais para a terceira idade assistidos na unidade.
Lema
"Não faz mal não estar bem" é o lema da sensibilização sobre saúde mental levada a cabo pelo hospital militar durante a pandemia de covid-19.
Linha de apoio
A unidade está a disponibilizar uma Linha de Apoio Psicológico para utentes, que podem pedir ao médico o encaminhamento para Consulta de Intervenção em Crise, e para trabalhadores, sendo que o serviço foi alargado aos funcionários civis.