Imobiliárias pedem cartas de apresentação e recibos de vencimento para visitar casas
Empresas solicitam declarações de IRS só para ver imóveis destinados ao arrendamento. Setor admite que é abusivo e pede regulação.
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Procurar uma casa para arrendar, principalmente nas grandes cidades, transformou-se numa tarefa hercúlea, devido à escassez de imóveis e ao preço das rendas. Mas, atualmente, quem procura habitação passou a estar sujeito, também, à exposição da sua vida pessoal. Desde cartas de apresentação a declarações de IRS, passando por recibos de vencimento e por contratos de trabalho, são vários os documentos exigidos por algumas agências imobiliárias e proprietários, logo no momento de agendar visitas aos imóveis ou de apresentar propostas. As associações do setor mostram-se contra as práticas atuais, que admitem ser abusivas.
Joana S., de 35 anos, tem passado os últimos meses em busca de uma nova casa para arrendar, no centro de Lisboa, depois de aquela onde vive ter sido vendida. O senhorio deu-lhe um prazo para sair e, a partir daí, começou "o inferno" da procura. "Só os preços que encontramos, já é algo absurdo. Mas, depois, ainda me deparei com o facto de ter de expor a minha vida toda. Neste momento, ainda não tenho casa e os meus documentos pessoais já andam nas mãos de meia dúzia de pessoas", lamenta Joana.
É indecoroso
Num dos últimos contactos que fez pela Internet - cujo conteúdo foi mostrado ao JN -, a consultora de comunicação mostrou interesse em visitar um imóvel. E, de imediato, a responsável pelo anúncio pediu-lhe "uma breve apresentação dos interessados", incluindo "nome, idade, ocupação e estabilidade profissional", assim como "duração pretendida, IRS do ano passado e possibilidade de fiador".
"Recusei-me a entregar a declaração e IRS e até disse que duvidava da legalidade deste tipo de exigência", conta Joana. "Já tinha tido outro caso em que me pediram o contrato de trabalho quando ia para fazer a proposta. Também recusei".
António Machado, secretário-geral da Associação dos Inquilinos Lisbonenses (AIL), diz que esse tipo de práticas "tem vindo a ser usual". "É um abuso de poder e chega a ser indecoroso. O Governo sabe, mas é cúmplice. Estas práticas deviam envergonhar qualquer um", afirma (ler caixa).
Os procedimentos levados a cabo por algumas imobiliárias e por alguns proprietários também são do conhecimento da Associação dos Profissionais e Empresas de Mediação Imobiliária de Portugal (APEMIP), que diz, contudo, não ser "uma prática generalizada". "Percebo que se faça uma análise prévia para conhecer melhor o possível inquilino. E, se for para celebrar contrato, é normal que se procure saber a fiabilidade financeira do mesmo e a capacidade para arrendar aquele imóvel. Para visitar casas não faz sentido. Parece-me abusivo que estabeleçam essas condicionantes", opina o presidente, Paulo Caiado.
Nada na lei o impede
Segundo Alexandra Cachucho, advogada que integra o corpo jurídico da Associação dos Inquilinos e Condóminos do Norte de Portugal, a legalidade deste tipo de práticas não está em causa. "Não há nada na lei que impeça", assegura.
No entanto, de acordo com a jurista, "o que se pode entender é que seja abusivo. Existe uma norma, no artigo 334.º do Código Civil, relativa ao abuso do direito, que tem a ver com a forma e com o momento. Porque é muito diferente pedir esses documentos para a celebração de um contrato ou pedi-los para agendar uma visita".
O JN tentou, sem sucesso, ouvir a secretária de Estado da Habitação, a quem dirigiu um conjunto de perguntas escritas que ficaram sem resposta. A provedora de Justiça alegou que "não intervém em relações entre privados".
António Machado acusa o Governo de ser conivente com a situação. "Não quer fazer uma coisa muito simples, que é regular o mercado e fiscalizá-lo. Não percebemos porque não se cria um registo destas propriedades, como acontece com o Alojamento Local", frisa o secretário-geral da Associação dos Inquilinos Lisbonenses . "O Governo anda a dormir. O mercado está desacreditado e é preciso devolver-lhe confiança. Neste momento, é um regabofe e cada um faz o que quer", aponta. Além disso, a associação defende que "o sistema de fiadores é medieval" e propõe a criação de "um seguro de renda, pago pelo senhorio", e outro "multirriscos, pago pelo inquilino" para suportar eventuais danos no imóvel.
Detalhes
Difícil de controlar
Para Alexandra Cachucho, "só uma alteração legislativa que colocasse o risco de aplicação de uma coima" poderia pôr fim a esse tipo de exigências. "De outra forma, é muito difícil de controlar".
Papéis de fiadores
Nalguns casos, sabe o JN, quer grandes quer pequenas imobiliárias também pedem os documentos dos fiadores do arrendamento, aquando da apresentação de propostas.
Oferecer mais
Quem está à procura de casa chega a ser aconselhado a oferecer mais do que o valor mensal de renda pedido pelo senhorio, para garantir que fica com a casa. "Cheguei a oferecer mais e mesmo assim a não ficar com a casa", conta Joana S.
Escassez agrava
Confrontado com estes pedidos, quem procura casa sente-se forçado a compactuar. "A pessoa tem sempre a opção de não entregar. Claro que, com a escassez de casas que existe, sentem-se quase obrigados", ressalva Alexandra Cachucho.
Obter garantias
Para o presidente da APEMIP, a "legislação não tem ajudado, quando um proprietário necessita de recorrer à Justiça por um inquilino ser incumprido". E isso, entende Paulo Caiado, leva a que os proprietários procurem obter o máximo de garantias sobre a fiabilidade do arrendatário. Diz que "não se trata de uma prática generalizada", apesar de conhecer casos em que os documentos são pedidos.