Crescimento do alojamento local, proliferação de bares em zonas residenciais e festas em terraços de hotéis fizeram disparar queixas por causa do barulho nas ruas de Lisboa. Moradores queixam-se da inércia da Câmara e já há famílias inteiras a dormir de tampões e quem pendure panos pretos à janela para chamar a atenção para o "pesadelo".
Corpo do artigo
Jovens completamente embriagados, a cantar e a gritar na rua, turistas a arrastarem malas pela calçada a altas horas, discussões e até violência doméstica em casas de alojamento local, derivadas ao excesso de álcool e ainda festas em terraços dos hotéis, cujo som se propaga de uma colina da cidade à outra. Estes são alguns dos relatos que o JN Urbano registou na semana em que a Câmara Municipal de Lisboa arrancou com uma campanha de sensibilização, espalhando cartazes pela cidade a pedir moderação aos que saem à noite.
José Luís Silva, 56 anos, construiu um pequeno "paraíso" na casa que adquiriu há alguns anos na Rua da Fé, mesmo junto à Avenida da Liberdade. É ali que, no coração da cidade, consegue ter um quintal, com piscina e um pequeno jardim. Mas o cenário que imaginou idílico para a sua reforma transformou-se num pesadelo.
"Ainda na última semana, fizeram uma rave por cima de mim, com mais de 20 pessoas dentro de casa, a fazerem um barulho insuportável. Quando lhes fui pedir para pararem, ameaçaram-me e tive de pegar num ferro para evitar ser agredido", conta o antigo subchefe do Regimento de Sapadores de Lisboa.
A minha neta de oito anos acorda de noite, aflita, a gritar por mim
"A minha neta de oito anos acorda de noite, aflita, a gritar por mim", descreve, contando que a situação se agravou substancialmente nos últimos dois anos, quando todas as outras frações do edifício foram transformadas em alojamento local e ficou "cercado" no prédio. "Até um turista a espancar a mulher, por cima da minha casa, já ouvi. Chamei a polícia, mas ela não apresentou queixa e nada aconteceu", conta. Ao barulho, acresce o arremesso constante de detritos para o seu quintal. "Já me atiraram garrafas, canecas de cerveja e até pedras da calçada para a piscina", conta.
Noutro ponto da cidade, em São Cristóvão, Joana Areal descreve um cenário idêntico. Aqui não é tanto o alojamento local, mas o excesso de bares que existem atualmente que originam as queixas. "Mesmo que fechem mais cedo, os clientes ficam na rua a dançar e a cantar em altos berros. Não conseguimos descansar. É impossível", desabafa, revelando que há pessoas a recorrer a tampões para os ouvidos.
Joana Areal faz parte do grupo de Facebook "Menos Barulho em Lisboa", que conta já com mais de 2800 membros. Foi aqui que nasceu a ideia da colocação de panos pretos nas janelas, em protesto contra a situação, que já começa a ganhar visibilidade.
São duas horas da manhã. Há festa, no Campo Santana, de estudantes. Música com batida, cantoria, urros. O som é ensurdecedor
"São duas horas da manhã. Há festa, no Campo Santana, de estudantes. Música com batida, cantoria, urros. O som é ensurdecedor", escreveu, há uma semana, na página do grupo, uma residente naquela zona da cidade.
Corre também uma petição pública dirigida à Câmara Municipal de Lisboa - já assinada por cerca de 1500 pessoas - a pedir medidas para "corrigir de forma célere os excessos e desequilíbrios". No documento que a suporta, sintetizam-se as queixas: "Há música alta e ininterrupta em esplanadas, bares, lojas, discotecas ao ar livre, na rua ou até em estruturas de animação flutuante no rio. Há ruído de obras dia e noite. E existem ainda as fontes permanentes de poluição sonora que causam danos severos, como o tráfego rodoviário e aéreo".
Mas os níveis de ruído não se limitam às zonas de diversão noturna. A associação ambientalista Zero fez um estudo sobre o excesso de ruído derivado ao tráfego aéreo e constatou diversas irregularidades. "Os limites definidos nas cartas de ruído para o período noturno são largamente ultrapassados em toda a zona de envolvência do aeroporto e rotas de aproximação", revela Mafalda Sousa, adiantando que estão a ser realizados mais voos noturnos do que os permitidos por lei.
A ambientalista destaca que, a par do tráfego aéreo, há também o rodoviário a contribuir para a falta de descanso dos moradores, a par, claro, das zonas de bares. E conta que, entre os casos reportados à Zero, houve também o de "uma família inteira que dorme de tampões para evitar o barulho da rua".
Em comum, todos os testemunhos se queixam da falta de medidas por parte das autoridades, nomeadamente da Câmara, e da falta de meios da polícia para intervir. O JN Urbano contactou a Autarquia de Lisboa para tentar obter explicações, mas, ao cabo de uma semana, não recebeu resposta. A autarquia começou, entretanto, há dias, uma campanha de sensibilização contra o ruído.
A "Bairro-Altalização" em curso
Os presidentes das juntas de freguesia mais afetadas confirmam porém as queixas. "Aumentaram muito, sobretudo pelas festas de turistas em casas de alojamento local, das rodas dos tróleis a arrastar pela rua, e pela nova moda das festas em "rooftops" [terraços] de hotéis. Nestas, o barulho atravessa a própria Avenida da Liberdade e não deixa ninguém descansar", refere Vasco Morgado (PSD), presidente da Junta de Santo António, para quem a situação piorou muito nos últimos anos.
Já o homólogo de Santa Maria Maior, o socialista Miguel Coelho, aponta o "excesso de bares e "barzinhos", permitido pelo licenciamento zero, em bairros como a Mouraria e Alfama como o principal foco do aumento das queixas. "Há uma tentativa de "bairro-altalização" - alusão ao Bairro Alto, há muito conhecido pelos excessos na noite" -, aponta, defendendo horários mais curtos de funcionamento destes estabelecimentos e "controlo mais apertado", que, em casos extremos, pode culminar "na cassação da licença".
Segundo a Organização Mundial de Saúde, além dos danos irreversíveis no sistema auditivo, o excesso de ruído tem outros efeitos diretos na saúde, incluindo sintomas relacionados com stress, qualidade do sono, distúrbios psicossociais, mobilidade, desempenho, aprendizagem e memória, hipertensão, doenças cardiovasculares, entre outros