Agricultores querem que Estado pague danos causados pelo "excesso de animais que ninguém controla". Caçadores sem dinheiro para os indemnizar.
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Os javalis provocaram "mais de dois milhões de euros de prejuízos" a agricultores este ano, revela ao JN o presidente da Confederação Nacional da Agricultura. João Dinis exige que o Governo atribua "indemnizações" aos lesados e tome medidas para resolver o problema do aumento descontrolado daquela espécie, que causa cada vez mais danos.
Casos não faltam. As estufas de caracóis que Joana Moita instalou em Condeixa, perto de Coimbra, foram destruídas e "a produção foi quase toda comida" pelos javalis, por isso, o projeto "parou". Também em Vila Real e em Penela, os agricultores desesperam. "É uma praga", resume Dinis.
O Governo e o Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) não têm tomado "medidas eficazes" para controlar o número de javalis e evitar os prejuízos nas culturas, critica Dinis, e devem "atribuir indemnizações aos agricultores", já que as associações de caça, que por lei têm de os ressarcir dos danos, não o têm feito.
Milhões dos caçadores para o ICNF
O ICNF, aponta, "recebe mais de 11 milhões de euros por ano das zonas de caça e das licenças dos caçadores", por isso, deve "ajudar os agricultores".
A confederação pediu reuniões ao ICNF, lançou uma petição sobre o problema dirigida ao presidente da República e pondera pedir audições à ministra da Agricultura e à Assembleia da República. "Queremos ser ouvidos ou vamos protestar".
A lei determina que a responsabilidade pela gestão das populações de javalis e pagamento dos respetivos prejuízos seja assumida pelas entidades titulares e gestoras de zonas de caça. Mas tanto a Confederação Nacional dos Caçadores Portugueses (CNCP) e a FENCAÇA-Federação Portuguesa de Caça, duas das principais representantes dos caçadores, dizem que as associações não têm dinheiro.
"As zonas de caça municipais e associativas vivem um sufoco enorme no que diz respeito à sua saúde financeira", explica o presidente da CNCP, Fernando Castanheira, sublinhando que o problema dos javalis "tem mais expressão numas regiões do país do que noutras".
Também Jacinto Amaro, presidente da FENCAÇA, garante que as associações "não têm condições". "As dificuldades que, sobretudo, as zonas de caça associativa atravessam, não permitem pagar prejuízos". Em última instância, face às exigências de indemnizações, os terrenos dos agricultores poderão ser "desanexados das zonas de caça, mas aí é que os agricultores ficam entregues a si próprios", especifica Jacinto Amaro, assegurando que "os caçadores tentam colaborar com batidas e esperas, para controlar os javalis".
O ICNF não respondeu ao JN.
Culturas agrícolas, flores e vinha destruídas em Penela
Do "miniparaíso" que Joaquim Bernardino sonhou construir em Carvalhais, Penela, quando regressou de anos de emigração na Holanda, e do alento que trazia consigo, pouco resta. "Os javalis, veados e corços têm devassado tudo nos últimos anos e ninguém faz nada", lamentou ao JN o agricultor de 74 anos. Como consequência, foi abandonando as culturas
Joaquim Bernardino plantava crisântemos para vender e, nos últimos três anos, não conseguiu vender "nem um", um prejuízo que estima em cerca de 2000 euros por ano. Por isso, em 2019 reduziu a plantação e, "em vez dos 4000 a 5000 pés habituais", ficou-se pelos "200".
No ano passado abandonou a maior vinha que possuía, depois de "os javalis terem destruído 6000 quilos de uvas poucos dias antes da vindima". Lembra-se que um dia chegou ao terreno e "não havia nada para vindimar". Assim, lamenta, "não adianta".
Desistiu quando se apercebeu que os campos de cereais que cultivava "só serviam para "alimentar os javalis". Nem as hortaliças, cerejeiras, oliveiras, cedros, carvalhos, castanheiros e outras árvores resistiram, acrescenta. "Foçam a terra, roem os rebentos, destroem as cascas, nada escapa", enumera. Também as estufas, redes, vedações e outras estruturas de proteção, têm sido "destruídas" pelos javalis, veados e corços que vai avistando com frequência.
"Já nem me atrevo a fazer coisas em grande porque, quanto maior a plantação, maior o prejuízo", diz. Os prejuízos nas últimas três décadas ascendem a "mais de 25 mil euros". Contas mínimas porque nem as quer fazer ao lucro que deixou de obter nos vários empreendimentos agrícolas falhados nos seis hectares de terreno.
"Nem um cêntimo recebi"
Bernardino diz que contactou a associação de caçadores locais mas "nunca pagaram um cêntimo de prejuízos e riem-se de mim". Também procurou apoio da Câmara de Penela, denunciou a situação ao Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas e outras entidades locais, mas "nada".
O agricultor não esconde o desalento perante o "abandono" a que se sente votado. "Quero trabalhar, mas não há condições. Se não tivesse feito nada desde que regressei da Holanda, em vez de tentar investir e fazer um miniparaíso, estava melhor na vida", desabafa.
Naquela região, alerta, há "muitos terrenos a serem abandonados e isso causa desequilíbrios no ecossistema".
Campos de milho e de batatas dizimados em Vila Real
No vale da Campeã, em Vila Real, os prejuízos provocados pelos javalis nas culturas "têm vindo a aumentar", deixando os produtores desesperados, conta Jorge Maio, presidente da Associação dos Agricultores do Concelho de Vila Real. Este ano, "cerca de 40% dos campos de milho foram dizimados". E, pela primeira vez, os animais investiram, também, nas colheitas de batata.
Os javalis, explica Jorge, que também foi lesado nas suas culturas, atacam o milho quando está mais tenro, ainda em "leite" e "dizimam" os campos. No vale, são plantados entre "80 a 90 hectares de milho", por cerca de duas dezenas de agricultores. "Alguns têm áreas maiores, mas muitos têm pequenas parcelas e ficam praticamente sem nada", especifica o agricultor. Contas feitas por baixo, considerando que a preparação, cultivo e tratamento do milho "oscila entre 900 e 1000 euros por hectare", os danos naquela zona rondam os 28 mil euros.
A quem resta algum milho, o trabalho de colher "duplica", porque "parte da mão de obra tem de ser manual, já que os campos não estão direitos para serem colhidos pelas máquinas".
Os prejuízos, continua, "têm vindo a subir", devido ao aumento do número de javalis na zona. "Não têm havido batidas nos últimos anos e não se faz a devida correção de densidade da população", explica.
Cruzam-se com eles de dia
Os javalis são tantos, diz, que cruzar-se com alguns exemplares durante o dia passou a ser algo normal naquela zona.
Este ano, "pela primeira vez, os javalis atacaram, também, as culturas de batatas", destruindo "cerca de 20% a 30% da produção", calcula Jorge Maio. Nesta altura, os animais viram-se para as castanhas, somando ainda mais prejuízos e aumentando o desespero. "Este ano os javalis têm dado prejuízo todo o ano, em todas as culturas", sumariza.
O presidente da associação de agricultores do Vale da Campeã garante que já colocou o problema ao Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas, que os terá encaminhado para a associação de caçadores da região. "Mas a associação de caça, diz Jorge, responde "que não tem possibilidade, não têm caçadores interessados em fazer a correção de densidade e eles não têm meios para assumir os prejuízos", relata.
Por isso, defende, "tem que haver uma intervenção central, política, para fazer uma correção de densidade a sério. Atualmente isto é uma praga".
SABER MAIS
Batidas alargadas
O Governo permitiu este ano que, findo o período normal de caça, fosse possível abater javalis pelos processos de espera e de batida até 30 de setembro. A medida pretendeu ajudar a corrigir o excesso daquela espécie, mas não terá sido suficiente.
30 mil abatidos
Segundo Carlos Fonseca, da Universidade de Aveiro, que se debruça sobre questões relacionadas com javalis há cerca de 25 anos, são abatidos, em Portugal, cerca de 30 mil destes animais por época de caça.
Fácil adaptação
A espécie tem grande capacidade de reprodução e de mobilidade, o que torna difícil obter números exatos sobre a sua população. Adaptam-se com facilidades a novos ambientes e a diversas fontes de alimento.
Paralelo na Europa
A perceção do aumento de javalis em Portugal encontra paralelo no resto da Europa. Ao longo dos últimos anos tem-se verificado, na maioria dos países europeus, um aumento do número destes animais.
Prevenir doenças
Um estudo sobre a distribuição e quantidade de javalis, como o da Universidade de Aveiro, é importante para criar planos contra potenciais ameaças, como a peste africana.