João Goulão nasceu na Sertã, há 70 anos. É médico, presidente do Instituto de Comportamentos Aditivos e as Dependências (ICAD), a mais recente geração de um órgão que já teve várias nomes sob a mesma liderança. Até agora, pois João Goulão está de saída. E deixa como principal aviso a preocupação com o álcool.
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Está em funções ao abrigo de uma exceção por interesse público. Está disponível para continuar?
Fui convidado ainda pelo Governo anterior para continuar e para assegurar estas tarefas de constituição de um novo organismo. Fui confirmado pela atual tutela, a secretária de Estado da Saúde, Ana Povo, com quem interajo diretamente, mas aquilo que está combinado é que, tão breve quanto possível, o lugar que eu ocupo e o do meu colega vogal do Conselho Diretivo serão colocados a concurso.
Há algum prazo?
O prazo que fixámos, a senhora secretária de Estado e eu, foi que quando o concurso estiver concluído, sairei. Acabou, já chega. Desde 97 que exerço funções de Direção nos sucessivos organismos, o que tenho feito com enorme gosto e entusiasmo, mas francamente também está na altura de haver aqui uma renovação até geracional.
Essa indisponibilidade estende-se também ao vogal Manuel Cardoso?
Sim, estamos ambos com esta disposição de estar enquanto for necessário, mas de sair assim que for possível. Ele está perto da minha idade, tem perto de 70 anos, temos sido companheiros nestas funções desde 97 ou 98. Temos feito uma excelente equipa, mas está na altura, de facto, de dar lugar a outros.
As dificuldades financeiras deste ano contribuíram para a decisão de sair?
Não. As dificuldades financeiras decorreram do facto de não ter sido aprovado um orçamento e todos sabemos as vicissitudes políticas que aconteceram ao longo deste ano. Para o ano de 2025, aquilo que está previsto também é curto. Vamos precisar de reforços ao longo do ano. Mas isto não foi determinante para que eu saia. São 30 anos de atividade nesta área, já chega. E não se justifica uma autorização excecional para que um profissional de provecta idade continue.
As relações com o Ministério da Saúde ficaram beliscadas com estes problemas?
É evidente que houve aqui episódios que não foram de todo agradáveis, mas também lhe digo que desde 97 até agora já trabalhei com não sei quantos governos, ministros, secretários de Estado, e não é a primeira, seguramente não será a última, em que há alguns desencontros na identificação ou na assunção das dificuldades. Acabou por ser suprido e creio que chegaremos ao final do ano sem défices. Agora, não dá para grandes rasgos e isso sim depende da priorização política. Precisamos de meios, precisamos de suporte político.
Em que sentido?
No mais imediato e naquilo que tem a ver com a tal visibilidade que dá inclusive lugar a que haja já alguma verbalização de intenções de inverter aquilo que é o paradigma em que nos movimentamos, um paradigma de descriminalização. Algumas verbalizações no sentido de endurecer as políticas são um retrocesso. Do ponto de vista civilizacional, nós temos sido um farol para o mundo nesta abordagem.
O orçamento do ICAD para 2025 é de 48 milhões de euros, mas o IDT em 2011 tinha 74 milhões. Já fez as contas para perceber que reforço precisa?
A nossa proposta andava à volta dos 80 milhões. Na altura do IDT, os problemas da droga e da toxicodependência eram identificados pelos governos como a primeira preocupação dos portugueses. Isto tinha reflexos políticos naquilo que era o investimento que o Estado estava disposto a fazer nesta área. Se calhar trabalhámos bem demais e as questões da droga vieram por aí abaixo e hoje são para aí a décima terceira ou décima quarta preocupação do país. Agora, a escolha é: queremos que o fenómeno continue a recrudescer e que ganhe as proporções que tinha no final dos anos 90 em que detetaríamos pelo menos 100 mil utilizadores problemáticos de droga, sobretudo de heroína?
Os cartéis multinacionais estão a investir em Portugal?
A PJ, as outras forças policiais, PSP, GNR, as alfândegas, têm sido muito eficazes e, aliás, aumentaram a eficácia depois da descriminalização, Porque em vez de consumirem todo o seu tempo e energia com as vítimas, puderam dirigir a sua atenção às grandes organizações criminosas. A redução da oferta traduz-se também naquilo que é a regulação de algumas atividades lícitas e também, naquilo que tem a ver com as bebidas alcoólicas.
O álcool precisa de regulação?
O álcool é legal, mas isto não o isenta de alguma regulação. Isto tem a ver com a questão da publicidade, por exemplo, onde é necessário fazer mais do que tem sido feito. Há uma política de preços que também seria importante que fosse feita. O álcool em Portugal é disparatadamente barato, portanto, faria sentido que houvesse também alguma regulação da oferta por via de uma política de preços, fiscal.
Esteve no Brasil a colaborar num modelo de descriminalização das drogas leves. Que conselhos é que levou da experiência de Portugal?
Defendi a instalação dos órgãos que operacionalizam a descriminalização em Portugal que são as Comissões para a Dissuasão da Toxicodependência (CDT) e que nos proporcionam uma instância de interação com pessoas que de outra maneira não procuram o apoio dos serviços de saúde. Nestas comissões, nós conseguimos encaminhar quem é dependente, quem precisa de tratamento, para as respostas adequadas. Mas servem sobretudo para aqueles que não são dependentes, e que já consomem, para se identificar fatores de risco suplementares que possam ser removidos e evitar a dependência.
Por cada traficante detido, há um impacto imediato no volume de droga que chega às ruas?
Eu penso que não. Aquilo que é determinante é, de facto, a interseção de grandes quantidades que entram no mercado. E aí penso que há reflexos que são sensíveis depois no funcionamento do tal mercado. Desde logo pelos preços, porque se chega menos uma tonelada à rua, o preço dispara.
O mercado regula-se, não é?
O mercado regula-se e há uma série de reações em cadeia, porque se calhar a criminalidade também aumenta em resposta às necessidades aquisitivas dos utilizadores que são dependentes. E temos que ter a consciência de que a dependência ocasiona, de facto, uma inventividade brutal, sem fim.
Portanto, a aposta tem de ser na limitação da procura?
Penso que deve ser concertada com a redução da oferta e a eficácia acrescida que temos assistido por parte das nossas forças policiais é um esforço louvável. Com uma desproporção financeira brutal. Nós vemos agora que foi possível dotar a Polícia Marítima de lanchas rápidas que, durante anos, era quase brincar ao gato e ao rato. Mas é pela redução da procura que lá vamos, muito mais do que pela redução da oferta.
A dependência do jogo é mais ou menos relevante do que o impacto que têm, em termos sociais, a droga e o álcool?
O maior impacto em termos sociais e de saúde advém do abuso do álcool. Neste momento é talvez a preocupação dominante. Depois virão as substâncias ilícitas, nomeadamente o crack, que é muito desorganizadora, muito propiciadora de passagem ao ato e que passa por violência. Mesmo quando tivemos a tal população de 100 mil utilizadores de heroína, eles eram, de uma forma geral, cordatos e pouco dados a atos de grande violência. Com o crack, as coisas são diferentes.
Os efeitos são mais graves?
Exatamente. É aquela sensação de poder e do “quantos são”, que propicia de facto essa situação. Agora, no jogo, na dependência da internet, temos muitas pessoas jovens e menos jovens, em frente do computador ou do telemóvel e nem sempre para atividades muito produtivas, na maior parte dos casos para exploração das redes sociais. Mas também temos que ter a consciência que, no que diz respeito aos jovens, há aqui equilíbrios que temos que procurar, porque de facto há uma determinada geração que foi afetada nas relações interpessoais pela ocorrência da pandemia. E aprenderam a comunicar e falam uns com os outros através do telemóvel.
A proibição de telemóveis nas escolas pode ser aqui uma medida com utilidade?
Para miúdos mais novos eu acho que pode ser importante, mas depois, a partir daí, é preciso ponderar muito bem até onde é que é legítimo ir.
No caso dos ecrãs e do jogo, há necessidade de adaptar a resposta da saúde mental?
Sim. Também há uma interação cada vez maior. Nós estamos a ter pedidos de ajuda relacionados, quer com o jogo, quer com os ecrãs, nas unidades dedicadas às drogas e ao álcool.
E chegam das unidades de saúde ou das próprias famílias?
Todas. Próprias, das famílias, ou são referenciados pelo médico de família. Há várias vias para cá chegarem. E aquilo que subjaz a todos estes comportamentos é o mesmo tipo de mecanismo, que é o mecanismo da recompensa, o prazer que a atividade dá. Portanto, os nossos profissionais com experiência nesta área são muito eficazes a lidar com isto.
O Estado apoiar jogos da sorte não é uma contradição quando tem de prevenir e tratar?
Há de facto aqui algumas incoerências difíceis de sanar. Isto não é a melhor solução quando temos responsabilidade nestas matérias. Eu não sinto que o ICAD tenha que empunhar a bandeira do combate aos jogos sociais, mas também não acho que se possa inibir de tomar determinadas posições quando se discutem medidas, por exemplo, a propósito da raspadinha.
Como é que podemos inverter o cenário em que jogamos mais na raspadinha do que nos outros países europeus?
Todos podemos ver a olho nu a utilização da raspadinha, basta entrar em qualquer quiosque a determinadas horas e vemos uma fila de senhoras de idade, de classes sociais bastante fragilizadas, a jogar compulsivamente na raspadinha na expectativa de que possam resolver os seus problemas económicos e de facto estão a avolumá-los cada vez mais. Contrariar este fenómeno passa também por alguma pedagogia que os agentes de pontos de venda possam eventualmente desenvolver, mas passa por informação, pela literacia da nossa população. Tudo isto é muito geracional e demora a atuar, mas vejo com preocupação.
Quando diz que é geracional, espera que se reduza?
Sim, tenho essa expectativa.
Até pela questão da literacia?
Exatamente. E no entender-se também que quanto mais imediato é o resultado de um determinado jogo, mais apelativo ele é. Temos muitos milhares de pessoas que jogam no Euromilhões, mas a capacidade aditiva do Euromilhões é completamente diferente da da raspadinha, que eu compro e imediatamente tenho o resultado. E de facto não vemos com a mesma frequência os jovens a aderirem.
Mas não aderem a outros jogos, por exemplo, online?
Também penso que não podemos diabolizar em absoluto tudo. Há aqui uma componente lúdica que eu acho que deve ser preservada. Nós não podemos patologizar tudo.