Jovens obcecados por beleza: Espelho meu, há alguém mais maquilhado do que eu?
O culto pelos cuidados de pele e beleza em jovens é um fenómeno cada vez mais comum e preocupa os especialistas, que alertam para as consequências de aplicar produtos com substâncias desadequadas à idade.
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Quando o mundo era apenas analógico e material, muitas jovens admiravam as mães que se olhavam ao espelho enquanto davam cor às maças do rosto, antes de sair de casa. Com a internet, os modelos passaram a personas que se encontram à distância visual de um clique. Como resultado do poder de influência, milhares de jovens publicam conteúdos nas redes sociais a mostrar a maquilhagem que utilizam para ir para a escola ou a rotina com os cuidados a ter com a pele, ao deitar. A idade dos seguidores das influencers digitais revela que estas novas "celebridades" parecem exercer cada vez mais fascínio entre as novas gerações.
Se no mundo virtual proliferam vídeos que mostram as rotinas de cuidados com a pele, nas lojas de cosméticos abundam produtos com embalagens coloridas, aromas doces e formas lúdicas pensados e criados para atrair uma vasta percentagem da população infantil. Muitos destes objetos têm, para além das formas apelativas, um nome cativante, como é o caso de "cloud cream" (creme de nuvem), "juicy drops" (gotas suculentas) ou até "sugar skin" (pele de açúcar). É como se de todas as direções, crianças e adolescentes fossem alvo de múltiplos estímulos aos quais se torna difícil resistir.
As marcas recorrem a palavras como glow, cloud, magic ou dreamy para chamar à atenção, o que torna o produto ainda mais desejável aos seus olhos, mesmo que ainda não compreendam a sua utilidade. Normalmente, essa linguagem cheia de cores e palavras mágicas é utilizada em brinquedos ou alimentos, como cereais e doces. Neste caso, trata-se de cosméticos. O objetivo de várias marcas é, segundo João Soares Barros, investigador colaborador do LIACOM(Laboratório de Investigação Aplicada à Comunicação), "tornar o produto irresistível, originando uma ligação emocional que, na maioria das vezes, influencia o comportamento das crianças e a decisão de compra dos pais". Como justifica o também coordenador da pós-graduação em Comunicação e Marketing na Indústria Farmacêutica, na Escola Superior de Comunicação Social (ESCS), "a marca está apenas a adotar as suas fontes de identidade ao público-alvo a que se está a dirigir. Do ponto de vista técnico, é correto."
O fenómeno "Sephora Kids"
Desta mudança nos padrões de consumo infantil surge o conceito "Sephora Kids", que apareceu de forma informal nas redes sociais, em especial no TikTok e no X, entre 2023 e 2024. Nesta altura, vários vídeos de maquilhagem e cuidados de pele tornaram-se virais. A famosa loja de produtos cosméticos ficou mais popular nos últimos anos, mas com uma reviravolta inesperada. Se antes o perfil de consumidoras desta loja correspondia a mulheres entre os 25 e os 44 anos, hoje quem mais enche os corredores são crianças dos oito aos 12 anos. Em vez de os filhos irem à Sephora com as mães, agora vão as mães acompanhadas pela sua prole. "A motivação que está por detrás deste fenómeno é a mesma que leva um adulto a adquirir uma certa marca de roupa ou comprar um determinado carro para mostrar aos outros um estatuto em termos financeiros ou de posição na sociedade", explica o mesmo especialista. Com base em vários estudos de consumo, João Soares Barros afiança que "esta tendência está longe de ser inocente, uma vez que as marcas estão conscientes do poder da fidelização precoce", esclarecendo que "quanto mais cedo uma marca cativar um consumidor, maior é a probabilidade de que esse vínculo se mantenha ao longo da vida".
Cuidar, sem excessos
Manuela Cochito, médica especialista em dermatoveneoreologia, também tem identificado a mudança na estratégia de publicidade no setor da beleza: "As grandes marcas já se aperceberam que os cosméticos e cremes para adolescentes estão num mercado que tem um investimento cada vez maior." De
forma a motivar os jovens a iniciar, desde cedo, uma rotina de pele adequada às suas necessidades, a dermatologista considera que "muitas empresas boas e com produtos reconhecidos deviam adaptar-se e entrar no "jogo", investir no branding da marca".
A médica acredita que existem vantagens e desvantagens na preocupação dos jovens por cuidados de beleza: "Se houver mais crianças a aplicar protetor solar ou um bom hidratante por causa do TikTok, ótimo. Já aplicar três séruns diferentes porque se vê alguém a fazer o mesmo num vídeo, não faz sentido nenhum."
Todos os cuidados são bem-vindos, desde que, como sublinha Manuela Cochito, sejam adequados: "A pele de uma criança é muito fina e permeável. O uso excessivo de produtos pode danificar a barreira cutânea natural da pele, a camada mais exposta da derme, o que poderá provocar desidratação, irritações e problemas dermatológicos graves. Se os produtos forem aplicados na pele e na fase errada, podem sensibilizar e tornar a pessoa alérgica para o resto da vida."
Ainda assim, a especialista reforça que os cuidados com a derme são necessários desde cedo: "Tratar da pele é um bom hábito. É como lavar os dentes." O mais importante - afirma - é garantir que "o skincare seja adaptado ao tipo de pele e à idade de cada pessoa".
Acompanhamento parental obrigatório
Para alguns pais, as rotinas de skincare e o crescente interesse por determinados produtos cosméticos são vistos como um passatempo inofensivo. No entanto, já existem casos em que a preocupação prematura por cosméticos se tornou patológico. Além dos danos para a pele, a obsessão por produtos de beleza pode esconder um distúrbio maior.
Para que este fenómeno não galgue as barreiras da normalidade, é preciso, de acordo com os pedopsicólogos, acompanhamento parental. Ana Sofia Leal é psicóloga e mãe de Carolina, uma menina de 12 anos com mais de 200 mil seguidores na sua conta de Instagram. Nesta rede, a filha publica vídeos em que mostra a rotina de cuidados com a pele, tutoriais de maquilhagem e partilha momentos do seu quotidiano. Ao estar duplamente familiarizada com este
contexto, pelas crianças que recebe em consultório e a filha que se interessa pelo mundo da beleza, a terapeuta atribui uma certa normalidade ao fenómeno: "As crianças começam, desde muito novas, a querer maquilhar-se. A minha filha já se pintava com aquelas pinturas das bonecas. O interesse dela por skincare e beleza funciona como uma forma de explorar a sua criatividade e não como um meio de elevar a sua autoestima."
Será possível incentivar o interesse por skincare de forma positiva, adotando uma postura neutra ou devem os pais estar informados sobre o uso destes produtos e os seus potenciais efeitos adversos? Ana Sofia Leal entende que "tudo passa por uma supervisão daquilo que os filhos veem no telemóvel". A terapeuta e mãe de Carolina partilha uma dica essencial: "instalar aplicações que façam o registo da forma como as crianças passam o tempo na Internet".
O acompanhamento parental dos menores é ainda reforçado por Sara Cruz, psicóloga clínica: "Os pais têm de saber o que é os filhos fazem, que acesso é que têm a estes produtos e quais são. E depois, controlar o uso deste tipo de cosméticos. Mais do que impor restrições, é essencial que os pais compreendam e avaliem esta cultura de skincare."
Prestar atenção ao que os jovens gostam pode resultar na tão desejada aproximação geracional. "O interesse dos pais também é muito importante para a própria relação com os filhos, no sentido de criarem momentos e demonstrarem que querem conhecê-los, saber as suas motivações, além de também poderem participar", conclui Sara Cruz.
*Inês Valente
É aluna do 2ºano de Jornalismo, na Escola Superior de Comunicação Social (ESCS), do IPL. A decisão de estudar nesta área foi motivada pela vontade ilimitada de comunicar, assim como pela consciência sobre o papel crucial que o jornalismo exerce em estimular o sentido crítico da sociedade. Hoje com 21 anos, desde muito cedo que se tornou prioridade seguir uma profissão que lhe permita dar voz às histórias que devem ser reveladas.
Matilde Tralhão
Natural de Soure, no distrito de Coimbra, Matilde Tralhão afastou-se de casa decidida a estudar Jornalismo, na Escola Superior de Comunicação Social, em Lisboa, a quase 200 km de distância. Realizou o 1ºano da licenciatura, mas este ano letivo optou por se mudar para mais perto da terra natal e ingressou na área de Educação, na Universidade de Aveiro.