Lacerda Sales: "A melhor arma que temos é a vacina, a imunidade natural é mais perigosa"
Viveu quase todo o mandato em pandemia e é dessa luta que guarda as maiores lições de vida. Secretário de Estado Adjunto e da Saúde desde setembro de 2020, António Lacerda Sales garante que está tudo planeado para um grande aumento da incidência da covid-19 nos próximos dias.
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Nas últimas vagas e na que estamos a viver agora fica a sensação de que corremos atrás do prejuízo, não se anteciparam. O que é que falhou?
Permita-me discordar. Acho que hoje temos no SNS planeamento, logística e medidas mais bem preparadas, mais robustas e capacitadas. Não corremos atrás do prejuízo, pelo contrário, antecipámos medidas. E, a prova disso, foram as últimas medidas aprovadas quando antevimos uma sobrecarga dos serviços de saúde devido à transmissibilidade desta ómicron.
Mas vemos grandes dificuldades na SNS24 devido ao enorme volume de chamadas. Dá ideia que isto não foi antecipado...
Numa pandemia como esta, com um grau de incerteza diário, há determinadas circunstâncias que é impossível antecipar, temos é de reagir rapidamente. No SNS24 o que temos feito é mesmo reagir, aumentando os recursos - já temos mais de cinco mil pessoas a trabalhar, já temos mais call centers e vamos abrir mais - e fazendo alterações ao nível dos algoritmos, para podermos responder a um número imenso de chamadas.
Há uma gestão da pandemia em função de cenários? Se tivermos 50 mil casos/ dia, que medidas vão tomar? Está decidido?
Sim, temos que olhar para a pressão sobre os serviços de saúde e para aquilo que podemos fazer e planear bem: a vacinação, a testagem, o controlo de fronteiras, as medidas da DGS (máscara, distanciamento físico, etc). Todo o nosso planeamento vai no sentido de utilizar as melhores armas para o caso de a incidência aumentar em janeiro.
O que sabemos sobre os internados?
Sabemos que as pessoas que estão nos hospitais, mais de 60% não estão vacinadas. E isto numa fase em que mais de 8,5 milhões de pessoas estão vacinadas. É uma adesão histórica. Temos 88% de pessoas acima dos 80 anos com a dose de reforço e acima dos 65 anos são 84%.
Nos menores de 11 anos, a primeira fase ficou aquém do esperado.
É legítimo as pessoas terem dúvidas, mas compete aos profissionais de saúde passar a mensagem de segurança e eficácia da vacina que tem como objetivo primeiro proteger as crianças, depois o agregado familiar e depois o coletivo. Ainda assim, no primeiro fim de semana vacinámos 96 mil crianças e vamos continuar agora. De 5 de fevereiro a 13 março faremos as segundas doses, e os que não vacinaram os filhos antes, poderão fazê-lo nessa altura.
Há quem defenda o caminho da imunidade natural. É arriscado fazê-lo já?
Acho que a melhor opção é prevenirmos a doença e a melhor arma que temos é a vacinação. A imunidade natural é sempre mais perigosa porque não sabemos como é que cada um de nós reage à doença.
A tutela está sempre a falar no reforço de profissionais no SNS, mas continua a haver falta de médicos, enfermeiros... Quantos mais são necessários?
Não gosto de fazer da saúde arma de arremesso político, mas, entre 2011 e 2015, saíram cerca de sete mil profissionais do SNS. Tivemos de os repor e, falando em saldos líquidos, temos agora quase mais 30 mil. Nunca houve um reforço tão grande. Mas é preciso perceber que quanto melhor serviço oferecemos, maior é a procura. Há uma relação de indução da procura em função da melhoria dos serviços.
Há mais necessidades?
Sempre. Daqui a 20 anos vamos ouvir o mesmo. Tem a ver também com a população envelhecida, com patologia crónica acentuada e, por isso, serão precisos mais e melhores cuidados e obviamente mais profissionais de saúde. Mas hoje temos mais 4011 especialistas do que em 2015 e mais 850 médicos de família.
Mas continuamos sem atingir a cobertura total.
Por várias razões, desde a demografia médica ao facto de hoje haver mais 400 mil inscritos. Com o concurso de segunda época que está a terminar, partindo do princípio que as 235 vagas serão ocupadas, daríamos médico de família a mais 400 mil pessoas e ficaríamos com 600 mil sem médico, o número mais baixo de sempre.
Há sempre muitas vagas por ocupar. O que estão a fazer para captar e fixar médicos no SNS?
É verdade, mas a taxa de retenção de médicos no SNS tem aumentado, é de 88%. A fixação de médicos depende das políticas públicas, da revalorização das carreiras, da melhoria das remunerações, dos projetos de investigação que se dão aos médicos, da atratividade dos serviços hospitalares e dos cuidados primários....Mas deixe-me dizer que os autarcas podem vir a ser muito importantes nesta retenção dos médicos nas respetivas regiões. Por exemplo, tenho autarcas que me dizem que têm casas para oferecer a médicos que vêm com as famílias e estão a fazê-lo.
A política de incentivos para levar os médicos para zonas carenciadas deve passar para os autarcas?
Não, não nos demitimos das nossas responsabilidades. O estado central tem a responsabilidade de criar condições de trabalho para os profissionais de saúde.
É médico, já trabalhou num hospital público, acha que o SNS é atrativo?
A taxa de retenção fala por si. Gostava muito do serviço onde trabalhava, era apelativo e acredito que ao longo desse país há muitos serviços apelativos.
No Hospital de Leira, distrito onde é cabeça de lista pelo PS, 1600 enfermeiros pediram escusa de responsabilidade. Já tomou alguma medida?
Nenhum profissional de saúde se demite das suas responsabilidades, estas escusas são um alerta para os conselhos de administração, para o Governo, é assim que as entendo.
O que lamenta não ter conseguido concretizar?
Muitos projetos que, se não tem sido a pandemia, teríamos conseguido alavancar. Queria já ter o processo dos médicos de família mais avançado, trabalhar o estatuto do doente crónico, melhorar o acesso e a integração de cuidados. E também o reforço da humanização dos serviços. A Medicina não é só a questão técnica, é a questão humana, de proximidade ao doente. A componente de humanismo e de proximidade ao doente é talvez das mensagens mais importantes a passar às novas gerações de profissionais de saúde.
Qual foi o momento mais crítico?
Foi janeiro e fevereiro de 2021. Todos os dias, todos nós começávamos às seis da manhã com contactos permanentes com os hospitais a fazer aquilo que é talvez uma das maiores lições desta pandemia: a expansabilidade do SNS. Transferimos doentes para todo o país, para o privado e para o social. Às vezes tínhamos de transferir um, outras vezes eram dez, 15, mas cada vida salva era muito importante. Tudo o que conseguíamos era um ganho e isso dá um valor à vida enorme.
Foi difícil pedir ajuda internacional?
Não, foi mais o simbolismo da cooperação internacional. É importante que a Europa e os outros continentes possam cooperar. Não conseguimos parar uma pandemia enquanto tivermos 7,3% da população de África vacinada. Por isso, custa-me muito ouvir dizer que o processo de vacinação podia ter sido melhor, ainda por cima de pessoas que podem ter responsabilidades internacionais a este nível.
Fala de Durão Barroso?
Como é que alguém pode dizer uma coisa destas? É uma irresponsabilidade. Quando ainda por cima há responsabilidades na vacinação, através da aliança global, da GAVI.
Na possibilidade de reeleição do PS, está disponível para se manter na tutela da Saúde?
Estarei sempre disponível para o meu país. O meu compromisso com a Saúde é desde o Hospital de Leiria até ao Ministério. Não tenho ambição de lugares, quero poder colaborar e ajudar o meu país. Mas era importante que o resultado em Leiria fosse bom, que contribuísse para o melhor resultado possível do PS a nível nacional. E que houvesse uma maioria reforçada, duradoura e estável na próxima legislatura com pessoas que já tivessem a experiência de governação porque 2022 é um ano crítico e não suportará experimentalismos governativos.