António Lacerda Sales recusou, esta segunda-feira, responder às perguntas dos deputados durante a comissão parlamentar de inquérito ao caso das gémeas. O ex-secretário de estado invocou o “estatuto de arguido” para se manter em silêncio. Mesmo assim, negou ter falado com o presidente da República sobre o tema.
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"O meu estatuto de arguido confere-me o direito de me manter em silêncio para não me auto-incriminar. Estou proibido de fazer qualquer declaração sobre factos. Vou manter-se em silêncio em todas as questões", anunciou aos deputados durante a intervenção inicial.
O socialista começou a defender-se com críticas ao relatório da IGAS que "é uma tentativa de corresponder à pressão mediática da comunicação social, que hoje se propõe a tudo menos ao prosseguimento da sua função, a busca e apuramento da verdade", referiu, enfatizando ainda que não está disponível para "servir de bode expiatório num processo político-mediático a qualquer custo".
O médico indicou mesmo que a conduta de todo o processo “não é suscetível de merecer qualquer tipo de censura”, realçando que as crianças receberam o tratamento “de acordo com indicação exclusivamente clínicas”. “ Ninguém passou à frente de ninguém, pois nem sequer havia lista de espera”, vincou, lembrando que "foram tratadas até hoje 36 crianças".
Lacerda Sales questionou também o que teria acontecido se o Estado tivesse negado o tratamento. “Qual seria o sentimento em torno dessa polémica? Provavelmente estaríamos aqui a apurar responsabilidades dessa omissão”, afirmou.
Numa nota prévia, Lacerda Sales recusou a ideia que tenha solicitado o adiamento da sua audição antes se ser constituído arguido, esclarecendo que esse pedido foi feito no dia 1 de junho e que apenas no dia 4 foi constituído arguido.
Nega contactos com Marcelo, Costa e Temido
Após conhecida a decisão de Lacerda Sales, os deputados decidiram manter os trabalhos da comissão parlamentar de inquérito. Em resposta ao deputado do Chega, André Ventura, o socialista negou favorecimentos no acesso a tratamento inovadores no Serviço Nacional de Saúde. Lacerda Sales esclareceu que nunca falou com o presidente da República sobre o caso, nem com António Costa ou Marta Temido. E acrescentou que “nunca chegou nenhum email ou processo formalizado” ao seu gabinete.
O médico ainda citou um poema de Fernando Pessoa: “Eu sigo o meu destino, rego as minhas rosas e o resto são as sombras das árvores”. “Estou a falar a verdade e rego os portugueses que gostam de mim”, vincou. Durante a primeira ronda de perguntas, o médico invocou o direito ao silêncio a quase todas as perguntas. Ventura disse não ver "como a verdade pode interferir no processo" e defendeu que quando foi arguido foi "o primeiro a dizer tudo".
Do lado do PSD, o deputado António Rodrigues questionou se "era normal um membro do Governo receber pessoas para de alguma forma interceder por casos em concretos?". Sales notou que recebeu “centenas de pessoas” e sempre que lhe era solicitado enquanto assumiu as funções de secretário de Estado Adjunto e da Saúde. Já o deputado do PS, João Paulo Correia, revelou que existe um “hiato” por explicar. "Porque é que no dia 22 de novembro, o Hospital Lusíadas desmarca as consultas das gémeas e mais tarde, nesse dia, o Hospital de Santa Maria confirma as consultas para o dia 6 de dezembro?”, questionou o socialista, aludindo ao relatório da IGAS.
Função dos governantes é "ajudar as pessoas"
Questionado pela deputada da Iniciativa Liberal, Joana Cordeiro, sobre se Nuno Rebelo de Sousa lhe ofereceu algum benefício, Lacerda Sales atirou que a pergunta é “ofensiva” e que “os portugueses lá em casa sabem que é uma pergunta ofensiva”. Sobre como é que a sua secretária teve conhecimento do caso, o médico invocou novamente o direito ao silêncio. E realçou que a função dos governantes é "ajudar as pessoas", reconhecendo que chegam “centenas” de pedidos de ajuda ao Ministério da Saúde que são posteriormente reencaminhados para os hospitais.
Joana Mortágua, deputado do Bloco de Esquerda, questionou o ex-governante se não tinha conhecimento da ligação da sua assessora pessoal com o caso aquando da sua nomeação. Sales respondeu perentoriamente: “Obviamente não tinha conhecimento, tanto que até lhe dei um louvor”. Já o deputado do PCP, Alfredo Maia, abordou a necessidade de transparência no financiamento de medicamentos inovadores no SNS e questionou o ex-secretário de Estado se não considera o preço “obsceno”. Lacerda Sales assumiu que “tem de haver um equilíbrio delicado entre a necessidade de disponibilizar os medicamentos e a responsabilidade da indústria farmacêutica em oferecer preços justos e sustentáveis”.
O Livre, pelo deputado Paulo Muacho, questionou Lacerda Sales como é que os pedidos chegam à tutela para este tipo de casos. O médico indicou que são por “via formal”, mas realçou que não tem “memória de pedidos” provenientes da Presidência da República. “Muitas vezes, eu próprio não tinha conhecimento desses pedidos. Eram automaticamente reencaminhados para o serviços e instituições mais adequados", afirmou.
João de Almeida, deputado do CDS, acusou Lacerda Sales de “alimentar teorias” quando fala de factos que envolvem outras pessoas. O ex-governante atirou que “são pontas soltas que precisam de ser ligadas. Não são teorias”. A terminar a primeira ronda de perguntas, Inês Sousa Real, deputado do PAN, questiona novamente o ex-governante se não estava preocupado com as questões que poderiam ser levantadas com pedidos de ajuda que recebia no seu gabinete. Lacerda Sales disse que “recebia toda a gente” e, por isso, essas questões não se levantam.
Durante a segunda ronda de perguntas, não remeteu “responsabilidades para ninguém”, após ser questionado se deu instruções à sua secretária para enviar uma comunicação ao Hospital de Santa Maria tendo em vista a marcação da primeira consulta das crianças. Sales salientou ainda que “a administração dos medicamentos é sempre em função do critério clínico”.
A comissão parlamentar de inquérito ao caso das gémeas tratadas em 2020 com um medicamento de quatro milhões começou esta segunda-feira, com a audição de António Lacerda Sales. No início dos trabalhos, os deputados chumbaram uma iniciativa sobre a possível suspensão do processo de inquérito parlamentar até ao fim do processo judicial.
Recorde-se que o ex-secretário de Estado Adjunto e da Saúde foi entretanto constituído arguido no âmbito deste caso. Há duas semanas a Polícia Judiciária realizou buscas no Ministério da Saúde, no Hospital de Santa Maria e em instalações da Segurança Social.
Esta manhã, o presidente da comissão de inquérito, Rui Paulo Sousa, disse aos jornalistas que a audição da mãe das gémeas "tudo indica" será na sexta-feira, "em princípio por videoconferência". O Chega, que forçou a comissão parlamentar de inquérito, quer ainda ouvir outras personalidades envolvidas no caso, nomeadamente o presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, e o seu filho Nuno Rebelo de Sousa.