Os investigadores de acidentes ferroviários, chamados a intervir sempre que há sinistros graves, estão impedidos de aceder a imagens de videovigilância para apurar os factos.
Corpo do artigo
A lei atual proíbe o acesso e as empresas, que operam na ferrovia (como a IP e a CP) recusam-se a fornecer os registos. O Governo prepara-se para alterar a legislação e conceder esse direito, mas vai mais longe: permitirá a visualização de imagens de qualquer sistema de videovigilância "relevante" para a investigação. A Comissão Nacional de Proteção de Dados discorda e considera a medida desproporcionada.
A alteração legal é promovida pelo secretário de Estado das Infraestruturas, Jorge Delgado, através de um decreto-lei e visa pôr fim a esta barreira no esclarecimento de acidentes ferroviários. O Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves e de Acidentes Ferroviários (GPIAAF) só intervém no caso de acidentes graves, com vítimas mortais ou que causem danos significativos. Este ano, foram abertos três inquéritos, incluindo um atropelamento mortal de um idoso em Coimbra [ler ficha].
"As investigações de segurança ferroviária revestem-se de grande importância e considera-se importante dotar os investigadores de todos os meios disponíveis que permitam realizar as suas investigações", defende a Secretaria de Estado das Infraestruturas, em resposta ao JN. Atualmente, estão impedidos de aceder aos registos de videovigilância, mesmo que sejam essenciais para o esclarecimento cabal dos sinistros.
"Algumas empresas consideram que, de acordo com as leis nacionais de proteção de dados e da segurança privada, não estão autorizadas a facultar as imagens" ao GPIAAF. É com vista a clarificar esse quadro legal que o Governo preparou uma proposta de alteração", indica a Secretaria de Estado.
Filmes de cidadãos excluídos
Só que o projeto de decreto-lei esbarra na oposição da Comissão Nacional de Proteção de Dados. Embora não coloque em causa o "interesse público da atividade investigativa", entende que o poder que o Governo atribui aos investigadores é desproporcionado e "inadmissível". Acresce o entendimento de que esta matéria, que toca num direito fundamental, não pode ser alterada por mero decreto-lei e tem de ser legislada pela Assembleia da República.
O Governo "não se limita a alargar a possibilidade de os investigadores do GPIAAF acederem às imagens dos sistemas de videovigilância na posse do gestor da infraestrutura, das empresas ferroviárias envolvidas, das entidades de manutenção, dos prestadores de serviços, do Instituto da Mobilidade e dos Transportes", escreve a comissão no parecer. Possibilita, ainda, "acessos indiscriminados às imagens de videovigilância de qualquer outra entidade relevante para a investigação".
O diploma tornará lícito que os investigadores exijam "imagens a entidades que nem direta nem indiretamente se conexionem com a gestão da ferrovia". No entanto, o Governo esclarece que a autorização só contemplará sistemas de videovigilância, não abrangendo filmes captados por cidadãos. Face à discordância da comissão, a Secretaria de Estado das Infraestruturas garante que respeitará o parecer e adotará "a melhor forma para legislar sobre a matéria".v
Registos editados
A Comissão Nacional de Proteção de Dados entende que, caso a lei seja alterada, os registos de videovigilância devem ser previamente editados para impedir a identificação de pessoas e só depois fornecidos aos investigadores.
Três casos em 2020
O GPIAAF abriu três processos de investigação este ano por atropelamento de um casal de idosos em Coimbra que andava junto à linha, por colisão de um comboio com um camião na Linha do Norte e por descarrilamento de um vagão na Linha do Sul. O atropelamento em Coimbra, ocorrido em janeiro, matou um homem de 82 anos.