Decorreram três meses desde o maior e mais destrutivo incêndio do ano e não se passou da fase de candidaturas para ajudar os lesados.
Corpo do artigo
Em 49 anos de vida, Abel Martinho sempre amanhou a terra dos pais e o gado que costumava apascentar em Videmonte, Guarda. No reacendimento do incêndio na serra da Estrela, em 15 de agosto, as chamas galgaram de Famalicão da Serra, Guarda, e destruíram-lhe 98% das pastagens e metade dos castanheiros. "Reportei 60 mil euros de prejuízos, mas por enquanto não recebi nada".
O Ministério da Agricultura, que antecipou alguns subsídios à exploração, disse ao JN que decorrem candidaturas até ao próximo dia 20 e só depois disso é que são analisados os processos para ressarcir os lesados.
"Acho que não me vou meter nessas calças", adianta logo Abel Martinho. "É preciso apresentar um projeto e só 5000 euros é que serão pagos a fundo perdido", evidenciou. "E além disso será preciso pagar IRS sobre o valor recebido", concluiu o agricultor que lamenta a perda de rendimento imediato e futuro que resultaria da venda de castanhas. " Entravam 2000 euros por ano e agora, mesmo que haja replantação, vai demorar anos para repor o porte das árvores que tínhamos", sublinhou.
Idêntico pensamento é partilhado pelo presidente da Junta de Videmonte, que também figura entre os lesados. "Perdi 36 castanheiros, além de uma área considerável de pinhal", contabilizou António Coelho. "Só desta freguesia reportei mais de um milhão de euros de prejuízos à Direção Regional de Agricultura", confirmou o autarca.
Sem casa e sem apoios
Pese embora tenham ardido muitas casas devolutas, abrigos de apoio agrícola e casas de segunda habitação nos cinco concelhos do parque natural, só na Guarda é que arderam cinco casas de habitação permanente.
Nas Quintas do Ribeiro, Gonçalo, na Guarda, foram destruídas três, uma delas estava em reconstrução, depois de adquirida por um casal que vivia em Londres. Lionel Adams ainda hoje se diz afetado pelo sucedido. "Ardeu tudo em casa e nas hortas onde a minha mulher fazia permacultura", contou ao JN. "Elencámos os prejuízos na Junta de Freguesia, mas não tenho muita esperança de receber seja o que for", disse. " E ainda por cima, com a chuva, a rua de acesso à casa ficou com tantas crateras e pedras, que é impossível trazer materiais de construção", explicou desanimado. No lugar do Castelão, uma cidadã russa em Portugal há 22 anos também perdeu a casa onde vivia. "Nem consigo lá voltar", desabafou Tatiana Kislaia.
Encostas desprotegidas
Quase 90 dias depois de deflagrar o incêndio na Covilhã, que percorreu mais quatro concelhos do Parque Natural da Serra da Estrela, ainda ninguém conseguiu reconstituir a vida que tinha, ainda que parcialmente, com os prometidos apoios do Estado.
Em 14 de outubro, o Ministério do Ambiente assinou, na Covilhã, os contratos-programa com os municípios afetados pelo fogo, no valor de 8,9 milhões de euros, destinados a intervir de imediato na estabilização de solos, para evitar mais enxurradas (ver texto ao lado) e fazer a limpeza dos cursos de água, mas as empreitadas estão dependentes de concursos por concluir. "Depressa já não conseguimos fazer, mas vamos procurar fazer bem", sublinhou o presidente da Câmara da Guarda, Sérgio Costa.
Consequências
Lamas alagaram casas e viaturas menos de um mês depois
Ainda não tinha passado um mês sobre o fim do incêndio, dominado a 17 de agosto, e já outra tragédia se abatia sobre a localidade de Sameiro, em Manteigas. As chuvas torrenciais empurraram água e lamas para o centro da povoação, alagando casas e destruindo viaturas. Logo depois, foi a vez de Vale de Amoreira, no mesmo concelho, sofrer idêntico problema que, na globalidade, deu origem a um prejuízo acrescido de um milhão de euros. Sem vegetação, as encostas queimadas drenam as cinzas para os cursos de água e daí a importância da estabilização dos solos para evitar novas enxurradas. O risco mantém-se.
Serra mártir
141 mil hectares ardidos desde 1975
Entre 1975 e 2021, arderam quase 141 mil hectares no Parque Natural, representando cerca de 3000 hectares por ano. Em 2022, arderam 28 mil hectares, 22 mil em área protegida.
Ecossistema mais pobre
O fogo começou em Garrocho, Covilhã, e alastrou aos concelhos de Manteigas, Guarda, Gouveia e Celorico da Beira. Pinheiro-bravo e carvalhos foram as espécies mais destruídas.