A escritora e conselheira de Estado preside à comissão organizadora das comemorações do 10 de Junho em Lagos. Ao JN, alerta para a necessidade de recompensar os antigos colonos e refere que Marcelo está a ter pouca sorte no último mandato. Lídia Jorge espera que o futuro presidente continue dialogante e próximo do povo
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Qual é a mensagem que quer deixar neste 10 de Junho?
A mensagem provém do próprio local, da cidade e da região onde se desenrolam as celebrações. Lagos não é uma cidade isolada de Sagres, são uma unidade constrativa entre si. Sagres representa aquilo que foi o domínio, a técnica, o sonho de um empreendimento extraordinário e idealista, mas, ao mesmo tempo, eu diria que Lagos assinala mais outro aspeto comercial e muito difícil de encarar nos tempos de hoje. Foi ali que se iniciou a grande globalização da escravatura de massa. E os portugueses neste momento estão conscientes de que há a necessidade de encarar a história de outra maneira que não se encarava há 30 anos, quando Lagos foi pela primeira vez palco de celebrações. Há uma consciência diferente de todas as ligações históricas.
Ter vivido em África permite-lhe ter uma visão singular desta ligação histórica entre os povos?
Eu assisti a um momento muito delicado. Foi o momento em que terminou o Império Português, foi o final da Guerra Colonial. Isso, de certa forma, deu-me uma consciência de um novo tempo e de uma nova relação que se teria de manter com a África. Essa relação ainda não está restaurada como deve ser, não está. É algo que vai demorar ainda muito tempo, porque há ressentimentos a resolver, há novos reagrupamentos geoestratégicos no mundo que estão a alterar as relações entre os antigos povos que foram colonizadores e os colonizados. Há uma turbulência no ar muito grande que dificulta a cimentação de relações com a estabilidade, com entendimentos pacíficos que possam ser reparadores daquilo que é a herança histórica.
O presidente da República já defendeu o pagamento de reparações por crimes da guerra colonial. Concorda?
Bem, eu lembro-me do que o presidente disse e como foi muito mal interpretado. Não estamos a falar de um pagamento monetário, mas no sentido de haver relações humanas corretas. Isto é, aqueles que foram nossos colonizados que sejam recompensados por leis que os protejam, que lhes abram mais as portas, que lhes deem mais capacidade de emprego do que a outros. De resto, não há reparação possível. Quer dizer, pode-se trocar os objetos, mas não há possibilidade de reparação. O que está feito, está feito. A reparação é criar justiça e amizade fraterna muito mais intensa neste momento.
A nova composição do Parlamento é favorável a essas reparações?
Não, não é. Há uma linha muito agressiva que é altamente nacionalista, agressiva, racista, misógina, tudo isso que a gente julgava que não existia com uma grande evidência e afinal existe. Mas se olharmos bem para o Parlamento, a soma daqueles que ainda pensam de maneira contrária ainda é maior. Também há sociedade civil que pensa e que age. Não há um ambiente muito favorável, mas acho que os princípios enviados pela Carta dos Direitos Humanos são mais fortes do que tudo. A carta dos Direitos Humanos não se sobrou.
Este 10 de junho é o último de Marcelo Rebelo de Sousa enquanto presidente? Que balanço é possível fazer deste mandato?
Gostaria muito que esta celebração final, a última celebração do 10 de Junho durante o período desta presidência corre-se bem. O presidente está a precisar que corra bem, porque muitas coisas têm estado a correr mal. E o balanço é que ele teve pouca sorte. O último mandato do presidente coincide com uma degradação em toda a parte daquilo que são as instituições democráticas e o presidente viveu confrontado com a necessidade de dissolver o Parlamento mais vezes do que ele gostaria. Penso que ele sairá, não sei quais são os seus próprios sentimentos, mas devo imaginar que não foi uma coisa positiva. Não foi por ele, foi por uma conjuntura de situações em que a agressividade de todos e um desacautelamento sobre o que estava a acontecer na sociedade, uma incapacidade de leitura dos próprios partidos, que conduziu a isto. Agora, há um balanço que eu acho que é muito positivo. Foi e tem sido um presidente popular, tem estado junto de todas as pessoas, é um homem que é capaz da comoção, é um homem que mostra amizade. Acho que vamos ter muitas saudades dele.
O próximo presidente deverá ter em conta essa proximidade?
Sim, deve ter. Não precisamos de presidentes erráticos, não precisamos de presidentes distantes, não precisamos de presidentes autocráticos, não precisamos. Precisamos de presidentes dialogantes, que estejam próximos do povo, que sejam capazes de perceber os movimentos profundos das alterações que se vão gerando. Tenho pena se o próximo presidente for o oposto deste que tivemos.
O JN está a celebrar 137 anos a olhar para o futuro e, por isso, deixo o repto. Qual é o país que quer em 2030?
Espero que seja um país com mais justiça social, que se erradique a pobreza, não toda que nunca se consegue, mas pelo menos se erradique os níveis em termos percentuais, que se diminua acentuadamente nestes cinco anos aquilo que não conseguimos fazer. Espero que a Europa continue a ser a nossa grande parceira e que estejamos em paz.