Até 2040, Portugal quer, gradualmente, desincentivar o consumo de tabaco entre os mais jovens. Luís Martins Costa, investigador do ISCTE que coordenou o mais recente estudo sobre o peso económico e social do setor, alerta que as medidas restritivas terão impacto sobre quase 45 mil postos de trabalho, pede um debate alargado e defende que se deve olhar para as oportunidades desta indústria no contexto europeu. Como? É possível limitar o consumo no país, mas continuar a exportar e a reconverter a produção.
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A partir de 2025, os cafés deixarão de poder vender cigarros. Esta será a medida da proposta recentemente aprovada com um impacto mais significativo na atividade económica?
Sim e não. Vamos lá ver: a proposta de lei ainda não foi publicada, portanto não se percebe ainda bem exatamente o alcance da mesma.
Percebe-se as intenções?
Percebe-se as intenções, não se tem a certeza absoluta sobre o que exatamente vai ser legislado. Enquanto investigador, tive o grato prazer de coordenar um estudo sobre o impacto social e económico, e só isso, das três empresas que têm fabrico industrial de tabaco em Portugal. Qualquer alteração que venha a ser feita à lei devia ter em conta o panorama completo e os impactos totais, não só em termos de saúde, como é óbvio, mas também em termos económicos e em termos sociais. Tomar medidas assim, ad hoc, pode, eventualmente, até ser restritivo da liberdade individual. E o Governo admite que quer ir mais longe, as palavras são que as medidas propostas são inovadoras e antecipam políticas públicas europeias e internacionais neste domínio.
Pelo que conhece da proposta de lei, não foi tido em conta o quadro completo?
Penso que não, porque uma lei com esta abrangência terá de ter um debate alargado com todos.
Mas há tempo para esse debate quando a lei estiver no Parlamento?
Entendo que ainda estamos a tempo. O que está a sair são já intenções e medidas muito restritivas e começa a haver reações que todos nós vemos na Comunicação Social, porque há uma sensação de que o debate alargado que é necessário ter ainda não foi tido pelos vários elementos da sociedade. Porquê? A academia, desde logo, tem de estar envolvida. Pensamos que temos um papel fundamental enquanto entidade idónea, imparcial. Obviamente que os profissionais de saúde também têm de ter um papel. E os jovens, a sociedade civil, mas também as empresas. Parece-nos que não estão a ser tidos em conta todos os elementos da balança, nomeadamente naquilo que diz respeito ao impacto no emprego, direto e indireto, que esta indústria gera em Portugal. E quando falo em indústria, falo concretamente de três empresas que têm quatro fábricas espalhadas na Madeira, nos Açores e em Portugal continental.
Há também impactos indiretos.
Impactará fortemente num tecido empresarial muito micro, porque, hoje, um restaurante ou uma pequena loja não vive exclusivamente das receitas do tabaco, mas tudo conta. O fumador toma um café e compra um maço de tabaco e há ali receitas que vêm. E, depois, há um outro fator, que é o da dispersão geográfica em alguns pontos de Portugal. Já vimos reportagens feitas na Azaruja, a 18 quilómetros de Évora, onde há um único café e os moradores teriam de ir a Évora.
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Em 2020, Portugal foi responsável por 14,8% da produção total de cigarros e derivados de tabaco na Europa. Esta aposta económica irá sempre colidir com a proteção da saúde das populações?
Sim e não. Em termos económicos, o mercado funciona e, se as pessoas continuarem a fumar, há uma necessidade de mercado que tem de ser suprimida. Apesar da ideia de uma geração livre de tabaco até 2040, com a qual eu concordo plenamente, vai continuar a haver pessoas que fumam. Por outro lado, a indústria também está a reinventar-se. Há muitas semelhanças entre a indústria do tabaco e a indústria do automóvel. E, de facto, estas fábricas que existem em Portugal contribuem fortemente para a economia. Representam quase 15% da produção total de cigarros na União Europeia e somos os segundos maiores produtores, logo a seguir à Polónia. Se não formos nós, outros países vão aproveitar a oportunidade que temos em cima da mesa, e que também passa pela reconversão. O tabaco está a evoluir para produtos sem fumo e produtos sem combustão.
Uma das propostas que estão nesta intenção do Governo é justamente equiparar quer os cigarros eletrónicos, quer os cigarros a vapor.
Certo. Mas vai continuar a haver consumo, e havendo consumo, numa sociedade aberta de mercado, não só em Portugal, mas inseridos numa realidade mais alargada da União Europeia, há que haver oferta. Foi uma surpresa que tive. Nem eu nem a equipa que coordenei tínhamos a noção de que éramos o segundo principal produtor. Em nenhuma outra indústria temos esse lugar de destaque tão forte, talvez só na cortiça. Enquanto investigador na área da gestão, entendo que é uma oportunidade que não devemos perder.
Tendo em conta que fumar antecipa o final de vida, em média, 10 anos e que este é o maior risco evitável de doença e a principal causa de morte prematura, a equipa que fez o estudo sentiu este peso dos efeitos, enquanto olhava para os números? Ou entende que as duas coisas devem poder ser desligadas quando se investiga?
Este estudo foi uma encomenda, e não é segredo, da Philip Morris, cujo nome em Portugal é Tabaqueira. No ISCTE Executive Education, fizemos o estudo separando, precisamente, essas realidades. Claro que todos nós, enquanto pessoas, sabemos e temos presente o impacto na saúde do que é fumar ou não fumar, sejam produtos com combustão ou produtos sem combustão, mas, no âmbito estrito deste estudo, foi um fator que não estava em jogo.
O estudo indica que o setor impacta quase 45 mil pessoas, na sua maioria de forma indireta. São postos de trabalho ameaçados ou que podem ser reconvertidos?
São 44 mil pessoas impactadas, das quais quase 36 mil indiretamente. Significa que são pessoas que não estão exclusivamente ao serviço desta indústria, mas que, de algum modo, são tocadas por esta indústria. É onde, por exemplo, se incluirão os restaurantes, os cafés, as tabacarias, pessoas nos distribuidores que distribuem não só tabaco, mas também outros produtos. Portanto, haverá uma percentagem destas pessoas que poderão estar em risco, havendo uma diminuição do consumo e, consequentemente, das vendas. Não sei qual é a percentagem. O que sabemos é que diretamente da indústria dependem cerca de 3200 pessoas e também sabemos que o impacto relativo que a indústria tem na Madeira e nos Açores é duas a três vezes superior. Porquê? Porque enquanto em Portugal continental temos um tecido fabril mais diversificado, quer na Madeira, quer nos Açores, especificamente em São Miguel, o tecido industrial é muito mais limitado e, portanto, estas empresas têm um impacto muito maior.
O estudo olhou, também, para o impacto territorial, ou seja, não apenas continente versus ilhas no que diz respeito à produção, mas para o impacto fora dos grandes centros urbanos?
Olhámos sim, e com dois aspetos muito interessantes. Olhando para Portugal continental, a fábrica da Tabaqueira está localizada no concelho de Sintra, em Albarraque, mas em Coruche está o armazém central que trata toda a matéria-prima, onde há uma equipa de 38 a 40 pessoas. A outra realidade, e isso também foi para nós uma surpresa, é que a Philip Morris tem apostado em Portugal, explorando o talento português e o de estrangeiros que vêm trabalhar para o país. Vêm trabalhar em três centros de competência e em funções globais. Neste momento, são mais de 200 colaboradores que trabalham a partir daqui para o Mundo, de 40 nacionalidades, que já contribuem com a exportação de serviços na casa dos 36 milhões de euros. Muitas dessas pessoas estão remotamente, ao longo de Portugal: há pessoas em Seia, no Porto, na Maia, em Aveiro......
A produção de tabaco é essencialmente para exportação?
Estas fábricas não estão ao serviço de Portugal, exportam um volume de 86%. O destino é essencialmente Espanha, Itália e França e depois, muito menor, o conjunto dos restantes países europeus. São os países mais próximos que são abastecidos a partir de Portugal. Estamos num mercado europeu e, se não formos nós, enquanto país, a aproveitar essa oportunidade - que o estamos a fazer e muito bem - já temos outros países, como a Roménia, a posicionar-se na produção de produtos sem combustão.
A análise fez apenas o retrato a partir da realidade atual ou conseguimos perspetivar o que pode ser a evolução da indústria com uma alteração dos perfis de produtos que são levados ao mercado?
Essa variável não foi tida em conta. O estudo foi estático, uma fotografia de uma realidade a uma determinada data. Temos os números hoje, é possível, através da elaboração de vários cenários, quantificar impactos futuros.
Nomeadamente com as gerações mais jovens, uma vez que se pretende conseguir gerações livres de fumo até 2040?
Sim, é possível quantificar económica e socialmente. É preciso assumir alguns pressupostos sobre qual vai ser o consumo não só em Portugal, porque mais uma vez estas fábricas produzem para um conjunto alargado de países. Também não sabemos a 25 anos se, tecnologicamente, vai haver alguma evolução ou não em termos de outro produto.
Será inevitável que os novos produtos de tabaco estejam condenados a uma fiscalização apertada, apesar da tentativa da indústria de apresentar alternativas ditas menos nocivas?
Não sei o que quer dizer com fiscalização apertada. Do ponto de vista de qualidade, hoje é possível assegurar que o tabaco à venda em Portugal, pelos meios legais, que é a grande maioria de tabaco, é sujeito a muitas regras. Não tenho dados sobre isso, mas o que nos tem sido transmitido é que há pouco contrabando, porque é um produto lícito e controlado.
E com estas regras mais restritivas teme que esse aumento de contrabando possa ocorrer?
Pode acontecer várias coisas. Se a procura se mantiver, se houver um vazio na oferta, rapidamente vai ser coberto. Em todos os mercados, há um horror ao chamado vazio de consumo. Se os canais, entre aspas, oficiais não o fizerem, outros canais o irão fazer e, portanto, pode-se perspetivar em certas zonas aumento de produto contrabandeado, contrafacionado, inclusive, se calhar, algum incentivo a alguma criminalidade ligada ao tráfico de tabaco. Isto não interessa ao Estado. Ao ter controlo sobre quem produz e sobre os operadores que vendem tabaco em Portugal, o Estado obtém receitas.
Estamos a falar de 3,3 milhões de euros por dia, em 2021?
Por dia, em 2021 foram 3,3 milhões que entraram nos cofres do Estado. Uma receita que não é nada despicienda.
Mas, ao mesmo tempo, temos os gastos do Serviço Nacional de Saúde com a doença.
Esse é o debate alargado que é preciso ter em conta. É aí que defendemos que o chamado "business case" deve ser feito na totalidade, tendo em conta todos os impactos quantificados seriamente. Os impactos social e económico, os custos na saúde, os benefícios económicos, tudo a jogo e depois tomar uma decisão.
A maior preocupação que os governos têm é, essencialmente, com os novos consumidores, ou seja, com as crianças. Esta proposta de lei contribui para limitar o acesso dos mais novos a produtos de tabaco?
Seria só uma opinião minha e irrelevante para o tema. Na academia, contribuímos com um estudo sério sobre algo devidamente quantificado, em termos sociais e económicos. Deveríamos ter um estudo semelhante dos impactos clínicos. Eu não conheço, não sei se existe ou não. Parece-nos que se fala muito da saúde, mas não existe algo que mostre fidedigna e quantificadamente, e que permita escrutinar e validar esse impacto. É essencial fazê-lo e não politizar o tema.
Tem havido defensores de que está a ser colocado em causa um direito de escolha dos próprios cidadãos, mas é um dever essencial do Estado proteger a saúde. Considera um exagero trazermos para esta temática o tema da liberdade de escolha?
Não considero exagero, nem deixo de considerar. O que entendo é que essas variáveis devem ser tidas em conta, fazendo parte do conjunto alargado de variáveis que têm de ser avaliadas e quantificadas. E podemos ter unidades produtivas em Portugal a produzir para outros países, o que já é hoje a realidade. Temos de dissociar bem o que é a realidade de consumo num país, numa nação, versus a produção de um determinado produto que até nem se destina a consumo nessa região.
Mas a concertação de políticas europeias antitabagismo conduzirá, inevitavelmente, a uma queda destes valores também fora do país?
Inevitavelmente sim.
Ouça a entrevista completa este domingo ao meio-dia na TSF