Dois terços das interrupções de gravidez realizadas do lado de lá da fronteira ocorreram após as 10 semanas, revela relatório da Amnistia Internacional que conta com dados do Ministério da Saúde espanhol.
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Depois de várias portas fechadas no Algarve, Joana, 40 anos, rumou a Sevilha. Na sala de operações, antes da anestesia, recorda as perguntas da médica espanhola: “O que se passa em Portugal? Porque vieste aqui? Ainda na semana passada tivemos cá outra portuguesa”. Joana (nome fictício para proteção da identidade) foi uma das 2525 mulheres residentes em Portugal que foram a Espanha realizar um aborto entre 2019 e 2023. O testemunho e os dados do Ministério espanhol da Saúde fazem parte de um relatório da Amnistia International (AI) sobre as barreiras que persistem 18 anos depois da aprovação da lei da Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG).
Para obter uma “visão atualizada da situação relativa à IVG em diferentes regiões” do país, a investigação da AI, que será divulgada hoje juntamente com uma petição com recomendações às autoridades nacionais, combina o estudo de seis casos individuais, entrevistas com organizações e peritos, análise jurídica e recolha de dados quantitativos e documentais.
Resposta deficitária ou inexistente
Os resultados estão em linha com o que têm sido divulgado nos últimos anos: falta informação e apoio às grávidas sobre a IVG e sobre os direitos das mulheres, há zonas do país que continuam sem resposta ou com resposta deficitária – Açores e Alentejo, respetivamente – em resultado do elevado número de profissionais objetores de consciência (533 médicos em 38 hospitais do SNS), sobra discriminação e estigma sobretudo sobre os mais vulneráveis.
“Ir a Espanha para fazer um aborto não é coisa do passado”, destaca um dos capítulos do relatório “Uma opção sem escolha: Interrupção Voluntária da Gravidez”, que conta com informações do Ministério da Saúde do país vizinho. Além das 2525 mulheres que interromperam a gravidez entre 2019 e 2023, o documento destaca que, nos últimos dois anos deste período, das 1327 grávidas que abortaram do outro lado da fronteira, 613 fizeram-no até às 14 semanas de gestação (limite em Espanha). Olhando às semanas em que o ato foi efetuado, acrescenta, “em dois terços dos casos a interrupção da gravidez ocorreu após as 10 semanas, o limite legal para uma IVG em Portugal”.
Alargar o prazo de dez semanas para “aumentar o acesso aos serviços” e “reduzir os atrasos e a necessidade de as pessoas se deslocarem a Espanha para abortar” é uma das recomendações da AI . Assim como revogar a exigência de um período de reflexão obrigatório (três dias) e de dois médicos diferentes para efetuar uma IVG. Notando que, entre 2007 e 2024, houve 159 denúncias por alegados “crimes de aborto” e foram condenadas 33 pessoas em primeira instância (não se sabe se eram mulheres que tentaram ou efetuaram uma IVG), a AI defende a descriminalização total do aborto por opção, retirando-o do Código Penal.
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Cirurgia ou fármaco
Em 2023, 98,7% dos abortos no SNS foram feitos com recurso a medicamentos. No privado foram apenas 18,4% com fármacos, ou seja, a maioria foi por cirurgia.
Pressão no privado
Um dos testemunhos ouvidos pela AI alega que no hospital público não teve informação ou opção de escolha entre os diferentes métodos. Outro caso diz que, das duas vezes em que fez IVG no privado, sentiu muita pressão para optar pela via cirúrgica.
Sem opções
A AI receia que não esteja a ser dada opção às mulheres sobre os métodos disponíveis para IVG.
Discurso direto
Natália*
Porto, imigrante brasileira, 29 anos
“Liguei para o hospital de São João e não tinham vagas. Tentei depois o CMIN e só tinham marcação quase um mês depois”
Margarida*
Açores, 32 anos
“Demorei um bocado a perceber que não havia um único médico nas nove ilhas dosAçores que fizesse uma IVG”
Laura*
Lisboa, 34 anos, conversa com administrativa no SNS
“Se está de quatro semanas, vai ter de esperar porque elessó atendem às oito. Vai ter de ouvir o coração do bebé, por issonão vale a pena marcar nada antes disso”
Teresa Bombas
Médica especialista Ginecologia/ Obstetrícia
“Não podem ser os doentes a ter de bater a várias portas até encontrarem uma alternativa”
Patrícia Cardoso
Associação Escolha
“Há muita gente que não sabe que é crime [fazer uma IVG sem cumprir os requisitos legais] e pensa que, por haver uma lei não é crime”. Esta iliteracia jurídica é gravíssima”
*nomes fictícios