Baixos salários, precariedade e falta de progressões explicam abandono precoce das fileiras. Tutela quer apostar em mais incentivos à transição para a vida civil.
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Metade dos militares contratados sai das Forças Armadas antes do fim do contrato. Em 2018 (até ao final de novembro), foram 1759 (1564 só no Exército) de um total de 3101 saídas (incluem termos de contratos) num universo de 10 657 contratados. A precariedade - os contratos são de seis anos -, os baixos salários e a falta de progressões explicam o abandono precoce das fileiras, segundo as associações do setor. E o regime de incentivos para a integração na vida civil é considerado insuficiente.
Os números são do Ministério da Defesa e não permitem traçar uma evolução, já que a tutela refere não possuir estes dados sistematizados de anos anteriores. A situação não é, porém, novidade para as associações de militares. "Isto está a acontecer bastante nos praças do Exército, e é uma situação que não se consegue controlar. Eles pagam indemnizações para sair, e são pesadas - de dois e três mil euros - para um indivíduo que ganha o ordenado mínimo", observa António Mota, tenente-coronel da Força Aérea e presidente da Associação de Oficiais das Forças Armadas (AOFA).
"Os praças ganham pouco e estão cansados; um efetivo de cerca de 26 mil tem de cumprir as missões de 31 mil e, até agora, as Forças Armadas não deixaram de cumpri-las. As pessoas andam sobrecarregadas", alerta o oficial. Luís Reis, cabo-mor da Marinha que preside à Associação de Praças (AP), deixa idêntico aviso, e também critica a "grande precariedade" dos militares contratados, fator que ambos consideram ser determinante na hora de decidir permanecer ou sair das fileiras antes do termo máximo do contrato, que é sujeito a renovações contínuas.
O mesmo sucede com as progressões. "Seis anos no posto de soldado do Exército representa uma diferença de menos 26 mil euros em relação a um militar da Marinha, porque este progrediu", concretiza o líder da AP.
Para suprir o défice de profissionais - já caracterizado de "dramático" pelas associações do setor -, o Ministério da Defesa adiantou, ao JN, estar "a trabalhar num número que se situa num intervalo entre 2000 e 3500 admissões por ano no conjunto dos três ramos [Exército, Marinha e Força Aérea]", com o "objetivo de tentar estabilizar um número de admissões que reduza a flutuabilidade dos efetivos".
incentivos insuficientes
No entanto, para que tal "seja possível e eficaz", há que "estabilizar o número das saídas, reduzindo as que ocorrem por iniciativa dos militares", refere a tutela, explicando que "melhorar a qualidade do tempo de serviço que os militares passam nas Forças Armadas, assim como os processos de transição para a vida civil são linhas nas quais o Ministério da Defesa Nacional tem vindo a trabalhar, designadamente com a revisão do Regulamento de Incentivos e do Regime de Contrato Especial" [ver ficha].
Mas as medidas avançadas pelo Governo são vistas como insuficientes pelos militares, que apontam também a necessidade urgente de uma revisão das remunerações e a integração de praças do Exército e da Força Aérea nos quadros, à semelhança da Marinha. As propostas são subscritas pelos presidentes da AOFA e da AP como formas de combater a "falta atratividade da profissão" e a "desmotivação" dos militares.
Formação
Aumentar a aposta na formação é uma medida de incentivo, mas as associações afirmam que "não há efetivos que permitam que seja cumprido tudo o que vem no novo regulamento".
Transição
O reforço do apoio à transição para o mercado de trabalho é outra das linhas mestras do novo regulamento de incentivos. O Centro de Informação e Orientação para a Formação e Emprego (CIOFE) tem perto de 5 mil inscritos.
Contratos
A alteração ao Regime de Contrato Especial (RCE) prevê contratos com duração máxima de 18 anos para "áreas funcionais que exigem processos formativos de elevado grau de complexidade", mas nenhum dos ramos definiu ainda quais as especialidades com RCE.
Vencimento
O Ministro da Defesa anunciou que o vencimento mínimo dos militares aumenta para 635,07 euros.
Forças Armadas tiveram redução de efetivos de 28% em 15 anos
Entre 2004 e meados de 2018, as Forças Armadas "tiveram uma redução de efetivos [entre quadros permanentes e regime de contrato e voluntariado] de 10 648 militares (28%)", com a perda maior a registar-se no Exército (de 19716 para 12608), revelou ao JN o Ministério da Defesa. Essa diminuição é mais expressiva no regime de contrato, cuja percentagem face ao total de efetivos "tem vindo a reduzir nos últimos anos" - de 52% em 2010 para cerca de 38% em 2018 - devido a "não admissões" impostas pelos "condicionalismos contextuais que o país atravessou", explica a tutela, reportando-se à crise económica.
"No anterior Governo, com a troika, foi determinado um número de efetivos que rondaria os 31 mil e que, por questões economicistas, ficou cerca de três mil abaixo do necessário", aponta o presidente da Associação de Oficiais das Forças Armadas (AOFA), destacando que, ainda assim, "em 2017, o efetivo global estava quatro mil abaixo de 31 mil".
A redução de admissões, a falta de candidatos e as saídas voluntárias explicam em larga medida o facto de as Forças Armadas (FA) estarem sistematicamente a perder efetivos desde 2011, ano em que se verificou a primeira grande quebra desde a implementação do modelo de profissionalização em 2004, que substituiu o serviço militar obrigatório. A partir de 2011, tem-se registado menos mil a dois mil homens a cada ano, com perdas mais significativas entre os militares contratados, seja por fim do contrato ou por desistência dos profissionais antes do tempo máximo de contrato (seis anos). Dos quadros permanentes saem, em média, meio milhar por ano.
O novo regulamento de incentivos "vai resolver muito pouco, porque não veio acompanhado de outras medidas: se continuarem a pagar o ordenado mínimo, as pessoas não ficam [nas FA]", sustenta António Mota, da AOFA. Visão idêntica tem Miguel Machado, tenente-coronel paraquedista na reforma e autor do site Operacional, ao afirmar que "ser soldado por 600 euros por mês não é entusiasmante".
"Toda a gente sabe que tem de se pagar mais", defende Luís Reis, da AP, que lançou uma petição online para a criação de quadros permanentes de praças no Exército e na Força Aérea. "O regulamento foi curto e pouco ambicioso", conclui o militar, que advoga o retorno ao "regime de contrato inicial, de nove anos".