O presidente da República vai distinguir, esta sexta-feira, quatro porteiros portugueses que na noite de 13 de novembro passado ajudaram a salvar mais de 200 vítimas do atentado ao Bataclan.
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A festa lusitana na Mairie de Paris reunirá 800 pessoas da comunidade portuguesa em França.
A tarde será para lembrar a noite mais longa dos porteiros portugueses. O presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa vai atribuir-lhes a Ordem da Liberdade na celebração do 10 de junho no Hotel d'Ville (Câmara de Paris) na presença do primeiro-ministro António Costa, do presidente da República francesa, François Hollande, e da presidente da Mairie de Paris, Anne Hidalgo, que já em janeiro distinguiu os "anjos" lusitanos com a medalha de bronze da cidade.
No pátio interior na Rue de Oberkampf, guardado por duas enormes portas azuis, Manuela e José Gonçalves recordam a primeira vez que viram François Hollande ao vivo. "Só o tínhamos visto na televisão. Na noite dos atentados, passou à minha porta com Manuel Valls, muito rápido, rodeado de seguranças. Ia para o Bataclan". José recorda o passo apressado e o semblante sombrio dos dois governantes na madrugada que não consegue esquecer.
Ainda tudo lhes parece estranho. As homenagens, a ida pela segunda vez em poucos meses ao Hotel d' Ville onde, apesar de uma vida passada em França, nunca tinham entrado. Esta sexta-feira, feriado em Portugal, será um dia como os outros para os dois "guardiens", até ao momento em que chegar o carro que os levará à Mairie de Paris onde serão condecorados com a Ordem da Liberdade. E foi com liberdade que José, Manuela, Margarida e Natália (os quatro porteiros que o presidente da República condecorará) escolheram ajudar a salvar a vida de cerca de 230 pessoas feridas, em choque, devastadas pelo terror, entorpecidas, na noite dos ataques terroristas de 13 de novembro.
Nenhum perdeu tempo a pensar nas consequências daquele auxílio. Franquearam as portas e deram um pouso seguro a quem suplicava pela vida nas ruas. Natalia Teixeira Syed, de 38 anos, que contou com a ajuda do marido Gabriel, agradece o atraso da filha Letícia que se arranjava em frente ao espelho quando começaram os disparos. "Foi ela que nos salvou a vida nesse dia, pois nós íamos ao Bataclan Café e houve três mortos no café", conta num português fluído, apesar de nunca ter vivido em terras lusas.
Benfiquista de coração, já abriu os olhos em França, mas os pais fizeram questão que nunca esquecesse as origens de Botelha. "Sempre falaram connosco em português. Apesar de já ter nascido em França, sempre me senti mais portuguesa do que francesa". É a nacionalidade que lhe pulsa no coração e a leva a molhar os pés nas águas de Albufeira, todos os verões. A portaria foi o emprego que surgiu por acaso.
"Tinha tido a minha filha Letícia há três anos e uma prima propôs-me fazer o trabalho durante um mês. E fiquei aqui durante 16 anos. Já não há muita gente da minha idade que faça esta profissão. A maioria tem mais de 50 anos. Aproveitei a oportunidade. Era para ficar dois anos no máximo, mas a vida escolhe por nós", sorri Natália, que hoje tem três filhos: Letícia, de 18 anos, Leonel, de 11 anos, e Noa, de 8 anos. Noa foi o único que não viu o desespero da centena de pessoas que cruzou o portão do prédio onde é porteira. Estava a dormir e Natália suspira de alívio por isso. O resto da família entregou-se aos cuidados dos jovens feridos e assustados que tomaram conta do pátio interior do edifício. "Foi um choque. O meu filho Leonel ficou assustado, mas também satisfeito por ter ajudado".
Natália nunca pensou que fosse um atentado terrorista. A ideia nem lhe passou pela cabeça. "Esperava pela minha filha no portão, quando comecei a ver pessoas a correr no sentido contrário e a ouvir barulhos fortes. Pensei que eram foguetes ou fogo-de-artifício. Depois, chegou a polícia e os bombeiros", assinala Natália, que não hesitou em abrir os portões, tal como fizeram Margarida Sousa e José e Manuela Gonçalves.
A emigrante de Fafe, de 50 anos dos quais 37 foram passados na capital parisiense, lembra que estava "um fim de dia maravilhoso" com muita gente na rua, como é habitual. Manuela e José tinham dado um passeio pelas ruas contagiadas de juventude com a irrequieta cadela Lulu. O alerta para o terror que se passava a uma centena de metros da sua casa chegou por telefone. "O meu filho de 24 anos telefonou-nos a gritar. Disse para não sairmos de casa, porque andavam terroristas nas ruas. Só depois é começamos a ouvir tiros, gritos. Foi muito triste",continua Manuela, que não deseja mais do que conseguir esquecer aquela noite. É impossível, reconhece. "Estou ansiosa de não voltar a mexer em certas palavras".
Ainda assim, repete com pesar o que testemunhou no dia 13 de novembro de 2015. "Bateram porta à porta" e eles abriram os enormes portões azuis. "Vimos tanta gente a entrar para o nosso pátio. Não estávamos à espera de uma coisa igual. Uns de manga curta, outros sem sapatos, sem telemóvel... Era uma tristeza", suspira. E ali ficaram a dar auxílio "até às cinco horas da manhã". No sofá da sua pequena casa de "guardienne", Manuela lembra jovem grávida de dois meses, com o "cabelo queimado e tiros nas pernas". Chorava por medo. Medo pelo terror vivenciado, medo por nada saber do companheiro e medo de perder o bebé. "Nunca mais a vi. Várias pessoas passaram por nossa casa nos dias seguintes com flores e chocolates. Vieram agradecer, mas aquela senhora não vi mais. Gostava de saber o que foi a vida dela".
O casal voltou à rotina diária, porém a dor não desapareceu. "No fim disto tudo, ainda queremos dar um sorriso, mas é difícil. Os jovens ficaram chocados, marcados para a vida", atenta Manuela, que viu partir recentemente o filho mais velho para o Porto, aproveitando o desejo antigo de reencontrar os amigos e de trabalhar em Portugal. O pai é da Maia e tem família na região. A filha mais nova completa 21 anos precisamente esta sexta-feira, no mesmo dia em que os pais são condecorados pelo presidente da República.
Marcelo Rebelo de Sousa entregará a medalha, também, a Margarida dos Santos Sousa. Mulher de garra nortenha e com uma alegria de viver contagiante, nascida em Cabeças, Penafiel, há 57 anos e que depois de ter trabalhado em tantos destinos diferentes já sente que é "um bocadinho de todos os lados".
Repetiu vezes sem conta a noite em que deu a mão, carinho e cuidados a cerca de 40 pessoas, todas feridas: umas por dentro, outras por fora. "Nunca na vida imaginei que isto pudesse acontecer no Bataclan. É uma memória muito dolorosa. É uma coisa que tento livrar da cabeça. Espero que isto tudo passe o mais rápido possível para voltar ao normal", sublinha Margarida, certa de que, por muito que o deseje, nunca esquecerá.