Marina Gonçalves: "Não há nenhum problema na coexistência de apoios municipais com o do Governo"
Com tetos máximos mais altos já este mês, o programa Porta 65 vai passar a ser contínuo a partir de junho, com regras simplificadas. Clarificar e simplificar são, igualmente, objetivos das alterações introduzidas no decreto-lei que está para promulgação e que desfaz dúvidas sobre a acumulação entre apoios municipais e atribuídos pelo Governo. Corresponsabilização é a palavra mais usada pela ministra da Habitação, mas com um claro aviso: é ao Executivo que cabe dar orientações, mesmo que alguns municípios sintam consequências financeiras se não as seguirem.
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O pacote Mais Habitação foi uma forte aposta política, mas, além das críticas de Oposição e de autarcas, mereceu palavras duras do presidente da República. Sentiu-se o rosto dessa derrota?
Não, de todo, até porque se discutiu a habitação como se estivéssemos só agora a falar, mas a grande reforma estrutural que está em curso não começou agora. Começou em 2015, início de 2016, quando se definiu como prioridade governativa e quando, em 2018, se aprovou a nova geração de políticas de habitação e a lei de bases, quando se começaram a executar políticas concretas, estruturais, de uma dimensão de universalidade do acesso ao direito à habitação.
Com tantos anos de experiência, como é que se chega a um momento em que temos cada vez menos fogos disponíveis?
Nós começámos a reforma estrutural, que, na verdade, não bebe do programa Mais Habitação. Tem alguns reforços na resposta para acelerar, mas a grande reforma estrutural é mesmo identificar respostas, através do programa 1.º Direito, para as famílias com menores rendimentos, e a mobilização do património do Estado para promover arrendamento acessível para a classe média. Essa é a grande resposta estrutural para este problema, porque, ao longo das últimas décadas, nunca tivemos a vontade de fazer acrescentar ao parque habitacional a esfera pública. Essa é uma prioridade que está em curso, tem fontes de financiamento definidas e um âmbito temporal ilimitado, como temos com o Serviço Nacional de Saúde e com a escola pública, por exemplo.
Uma das medidas mais polémicas neste pacote foi o arrendamento coercivo, que não é novo, mas é introduzido com novas variáveis. As câmaras que não quiserem aplicar o arrendamento coercivo não terão direito à receita adicional do IMI agravado, da mesma forma que, no caso do alojamento local, outra das medidas muito contestadas, as câmaras do litoral que quiserem aprovar novos licenciamentos perdem a prioridade nos fundos públicos para construir nova habitação. Não acaba por ser uma espécie de chantagem em que as autarquias perdem receita se não aplicarem as medidas propostas pelo Governo?
Estas medidas, seja a do alojamento local, seja a do arrendamento forçado, devem ser vistas no contexto em que são criadas. O arrendamento forçado não é uma figura nova, é uma figura que já existia, assim como existia o agravamento do IMI. Se o Estado cria instrumentos e estes não cumprem o seu objetivo por si, e este património não está a ser mobilizado para este fim, devemos tentar encontrar outros instrumentos. Certamente, se falar com todos os municípios do país, alguma vez terão usado a expropriação por utilidade pública. Já agora, do ponto de vista de consequência sobre a propriedade, a expropriação é mais gravosa na perspetiva do proprietário. O conjunto de instrumentos que vamos criando, e o facto de criarmos ou de reforçarmos, não implica que, agora, as políticas se façam com este instrumento apenas. Implica sim esta corresponsabilização entre todos das várias dimensões possíveis de intervenção - e também as consequências com a sua utilização. Mais uma vez, com o objetivo último, que é consensual, de garantir que as famílias tenham acesso a uma habitação adequada, compatível com os rendimentos que têm.
O mecanismo de identificação de edifícios devolutos está na lei desde 2006. Ainda assim, apenas 35 municípios fizeram essa classificação nos seus territórios. Como é que espera mais capacidade dos municípios para procederem a esta identificação?
O património devoluto é muito vasto, de várias dimensões e de vários proprietários e os municípios têm outros instrumentos para além destes. Se olharmos para as estratégias locais de habitação, muitas estão a identificar património devoluto que existe no seu município, público e privado, e a reabilitá-lo para colocá-lo, por exemplo, nas políticas de habitação. E isto, obviamente, faz com que este património nem sequer seja objeto de um IMI agravado, pois há uma solução por via de um investimento público, numa dimensão de trabalho articulado com o proprietário, sem passar por este instrumento.
A forma como o Governo desenhou o arrendamento coercivo fez com que o universo de imóveis elegíveis fosse de apenas de 9365. Há o risco de a medida não ter qualquer impacto?
Esse número é o que hoje está identificado e classificado como imóveis devolutos pelos municípios. Não tem a ver com a medida como está construída. Além disso, o programa Mais Habitação não se resume, de todo, a esta medida.
No que toca à discussão em torno da eventual inconstitucionalidade do arrendamento coercivo, admite que a sobreposição do direito à habitação face ao direito à propriedade possa fomentar fenómenos como o de ocupação?
Não, de todo. É natural que no debate muitas das opiniões públicas contornem um bocadinho o objetivo e o equilíbrio que está presente no programa Mais Habitação. Não temos medidas que promovam práticas menos regulares no mercado habitacional. Até porque achamos, e continuamos a dizer e reforçamos, que só numa lógica de parceria e de comunidade, em que todos fazemos parte de um objetivo comum, é que podemos funcionar. Por isso, é importante mobilizar os proprietários, mobilizar novas promoções privadas e cooperativas, o Estado, os inquilinos para este fim. E o programa Mais Habitação tem todas estas dimensões. Nós temos mesmo de priorizar, na forma como construímos as políticas públicas, o direito à habitação, porque temos mesmo uma emergência, mas com proporcionalidade face a todos os direitos que estão em cima da mesa.
O Governo prometeu começar a pagar os apoios à renda e a bonificação ao crédito em maio. Já tem, nesta altura, uma estimativa do número concreto de pessoas a que se conseguirá chegar no próximo mês?
Como o apoio vai ser retroativo, no caso das rendas a janeiro, estamos a ultimar a interação entre várias entidades que estão a trabalhar neste apoio. A nossa estimativa inicial foi de cerca de 300 mil agregados, entre uma medida e outra. Não tendo ainda um número final, aquilo que está em cima da mesa é essa estimativa.
Em relação ao novo Porta 65+, tal como o Porta 65 Jovem, vai ter como limite máximo de apoio cinco anos?
Desenhámos o Porta 65+ de maneira a ser muito semelhante ao Porta 65, até para simplificar o processo. Será um apoio a cinco anos, com regras muito semelhantes, ainda que, obviamente, com a especificidade dos agregados a que estamos a chegar. A maior novidade num e no outro programas é que passam a ser contínuos. Neste momento, temos um Porta 65 que funciona em três candidaturas: abril, setembro e dezembro. Ainda vamos lançar as candidaturas de abril, mas o que pretendemos é que, a partir de junho, seja contínuo.
O que acontece nos casos em que houve problemas com o registo dos proprietários nas Finanças, que, depois, não cumprem as regras para obter esse apoio?
Ainda olhando para o Porta 65, que temos estado a avaliar, porque já existe há alguns anos, fomos fazendo algumas alterações. Fomos alargando a elegibilidade, porque, inicialmente, era para jovens até aos 30 anos e passou para 35 anos. Os tetos de renda máxima foram, agora, atualizados e, neste concurso de abril, já vão ter tetos alargados, sobretudo nas áreas metropolitanas, que era onde estava mais desfasado, tendo sempre uma preocupação de tentar equilibrar os tetos máximos com a mediana do mercado. Temos verificado, também, um conjunto de situações de não-elegibilidade que nos permite ir afinando o documento. A questão da morada fiscal, no caso dos jovens, era uma questão determinante na não-elegibilidade e fizemos essa alteração no programa Mais Habitação. No caso do registo do contrato de arrendamento, o que fazemos na lei é, também, permitir que o próprio arrendatário possa registar o contrato. Esta é uma das alterações que foi para o Parlamento.
Já tem soluções para compatibilizar o apoio às rendas do Governo com os programas municipais já existentes?
Nós temos um entendimento um bocadinho diferente sobre a coexistência ou não dos apoios à renda com um apoio de âmbito nacional, que é oficioso, nem sequer implica requerimento, e que é extraordinário, ao contrário destes programas dos municípios. Ainda assim, havendo esta preocupação, temos de encontrar soluções em conjunto.
O Governo entende que os dois apoios podem coexistir, é isso?
O decreto-lei prevê um apoio que é cumulativo, na forma como foi criado, portanto não há problema de coexistência no nosso decreto-lei. Há sim, olhando para alguns regulamentos municipais, uma dimensão de não acumulação nesses regulamentos e essa dimensão deve ser trabalhada em conjunto. E aquilo que fizemos foi construir uma norma que clarifique. Temos um decreto-lei que, agora, está para promulgação, com as várias alterações que aqui falámos, do Porta 65, do Porta 65+, e o que fazemos aqui é clarificar esta coexistência entre os regulamentos municipais: o apoio que está a ser dado pelas câmaras e o apoio nacional.
Alguns destes sobressaltos não teriam sido evitados, se tivesse havido uma maior articulação prévia com a Associação Nacional de Municípios?
Nós temos sempre esta tendência de achar que o debate não é profícuo e importante para a discussão das medidas. Quando apresentámos, a 16 de fevereiro, o programa Mais Habitação, não dissemos "esta é a proposta de Governo, não vamos ouvir ninguém".
Mas o beneficiário, por exemplo, do Porto Solidário, ficará com certeza angustiado quando ouve o presidente da Câmara dizer que terá de suspender o programa, porque não pode coexistir com o apoio.
Mas isso terá de perguntar ao senhor presidente da Câmara e não ao Governo. Nós podemos olhar para angústia e alarmarmo-nos ou tentarmos trabalhar em conjunto e resolver. Estamos aqui a falar de um exemplo onde o problema foi identificado e não foi reportado às famílias sequer. Foi falado com quem tinha de ser, que era com as câmaras municipais e com o Governo. Encontrou-se a solução, resolveram-se as dúvidas que havia sobre a acumulação dos apoios. É isto que nos é exigido pelas pessoas, é que, efetivamente, saibamos trabalhar em parceria.
O Quartel de Manutenção Militar já passou para a propriedade do IHRU? Em fevereiro, foi prometida essa passagem, que permitiria resolver problemas de insegurança no local.
No caso dos imóveis da Defesa, nós teremos três imóveis no Porto, e alguns supõem uma parte fundamental que é o registo da propriedade. Temos estado numa articulação entre Câmara Municipal, a Defesa e o IHRU para resolver as questões do registo. No fundo, é esse passo que está a ser dado.
Em relação ao 1.º Direito, umas câmaras já estão a construir, outras ainda nem aderiram e, globalmente, está com uma execução muito baixa. Quais são as razões para haver pouco mais de mil casas entregues?
Nós temos mesmo de respeitar aquilo que 308 municípios estão a fazer pelo nosso país, porque o 1.º Direito está mesmo a funcionar. E o sucesso deste programa será, certamente, da grande responsabilidade dos municípios, que estão a trabalhar diariamente para a sua concretização.
Tem outros números de execução que não estes?
Há 242 municípios com estratégias em curso e que são invisíveis aos nossos olhos, mas não são invisíveis ao trabalho. Todos eles estão com levantamentos arquitetónicos ou com projeto ou a avançar com candidaturas e com orçamentos. Temos já no IHRU 650 candidaturas que representam à volta de nove mil fogos, que estão, portanto, já numa fase de maturação ou já em obra ou já em entregas. É um trabalho em contínuo. Todos os meses, felizmente, é melhorado e são remetidas ao IHRU mais candidaturas. Temos cerca de 1400 habitações entregues neste momento e temos mil habitações que, se a obra acontecer nos prazos que estão contratualizados pelos municípios, serão para entregar ainda este ano.
O PRR só paga 26 mil casas. De onde virá o dinheiro para as restantes, uma vez que já estão contratualizadas 52 mil?
Felizmente, temos 26 mil pagas a 100% pelo PRR, mas o 1.º Direito, felizmente, não foi um programa que surgiu com o PRR. Criámos o programa antes, sem saber que ia haver um plano de recuperação e resiliência, e com uma dimensão de corresponsabilização financeira, mas onde o Estado assumia, pela primeira vez e de forma universal no país, todo esse financiamento.
E quem paga o resto?
O que está previsto, e se não tivéssemos PRR, era isso que hoje estávamos a discutir, é a corresponsabilização. O Estado paga entre 40% e 60%, vamos arredondar para os 45%, porque depende de ser reabilitação, construção ou aquisição. No caso dos beneficiários diretos, o apoio até pode chegar aos 100% fora do PRR para os proprietários privados, porque depende do seu rendimento. E, depois, há uma quota parte de empréstimo em condições mais favoráveis do IHRU ao município e pode haver uma quota parte de autofinanciamento. Há municípios onde não há esta dimensão de autofinanciamento. Mas a maioria da operação está financiada, uma a fundo perdido, outra por empréstimo, por parte do IHRU aos municípios fora do PRR. É sempre importante olharmos para 1.º Direito como um programa anterior a este financiamento a 100%, que irá continuar para lá do PRR, eu diria mais, de forma complementar ao PRR.
O tema do alojamento local foi um dos mais discutidos e continua a originar protestos. Deveria ter-se mantido o caminho de regulação que estava a ser feito por algumas câmaras?
O caminho que está, neste momento, na proposta é precisamente o da regulamentação por parte dos municípios.
Embora com efeitos na receita e diretrizes dadas de cima pelo Governo.
Sim, sim, mas ao Governo cabe esta responsabilidade de definir políticas, ouvindo, obviamente, toda a gente, em função das preocupações legítimas de todos os setores intervenientes. A necessidade de equilibrar uma atividade turística e económica importante em nenhum momento foi posta em causa. A solução que, neste momento, vai ser discutida no Parlamento pressupõe a salvaguarda dos investimentos que foram feitos e a salvaguarda de que quem toma as decisões são, efetivamente, os municípios. Nunca pusemos em causa que quem está mais próximo da população e consegue identificar melhor as necessidades é o município. Só que a responsabilidade de um município é garantir habitação para as famílias e nós não podemos achar que conseguimos fazer coexistir tudo ao mesmo tempo. Temos muita habitação que transita para o alojamento local e devemos criar incentivos para poder voltar para o arrendamento.
Ouça a entrevista completa este domingo ao meio-dia na TSF