Presidente queria que fórmula passasse a ter em conta a vacinação, especialistas não veem motivos para mudar. Pandemia "modificou-se" e vírus pode ter-se tornado endémico. Há nova proposta para o desconfinamento.
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A reunião de sexta-feira no Infarmed deixou a descoberto a existência de um braço de ferro: de um lado, há responsáveis políticos, com o presidente da República à cabeça, que querem acrescentar variáveis como a vacinação à matriz de risco que mede a pandemia; do outro, os especialistas que entendem que a fórmula atual já transmite um "alerta" suficientemente preciso. Marcelo Rebelo de Sousa deixou mesmo alguns reparos aos peritos, pedindo mais clareza nas explicações. Também foi divulgada uma nova proposta de desconfinamento, que o Governo irá agora analisar.
No fim da reunião, Marcelo lembrou que a incidência do vírus baixou e que a pressão no SNS é hoje menor. Aludindo a certos "direitos fundamentais" que a pandemia abalou - referindo-se às falências e ao aumento da pobreza -, pediu que as medidas que vão sendo tomadas sejam explicadas da forma mais clara possível.
Segundo o presidente, dada a melhoria da situação pandémica, "começa a ser menos evidente", aos olhos da população, que haja razões para se manter o "sacrifício" nas vertentes económica e social. Na véspera, já tinha pedido que a matriz de risco passasse a ter em conta a evolução da vacinação.
A resposta coube a Andreia Leite, da Universidade de Lisboa: como a vacinação "deverá contribuir para manter valores controlados" de infeção, "não se justifica" alterar a matriz de risco. Atualmente, esta mede-se cruzando a incidência de casos com o Rt.
"Permite dar o alerta"
A especialista realçou que a matriz "permite dar o alerta" sobre a situação pandémica, ao passo que outros indicadores - como a vacinação, os óbitos ou as variantes - apenas devem ser considerados "numa avaliação de risco mais detalhada". A importância de manter uma comunicação "estável e clara" também pesou.
O tema também divide os partidos. Ricardo Baptista Leite, vice-presidente do PSD, considerou a posição dos peritos "sensata", mas pediu que se acrescentem dados como a vacinação, a positividade dos testes ou "a ligação epidemiológica entre os casos".
Moisés Ferreira, do BE, defendeu que a matriz atual ajuda a ter "boa comunicação" com o país. Já a Ordem dos Médicos entende que o Governo deve "adaptar" uma matriz que diz ter sido "vítima do sucesso da vacinação".
Temido pede "prudência"
André Peralta, da Direção-Geral da Saúde, falou numa "ligeira tendência crescente" de novos casos no país. A ministra da Saúde, Marta Temido, referiu que a pandemia se "modificou" (a maior incidência passou para a faixa dos 20 aos 29 anos) e que Portugal está, agora, numa fase de "transição".
No entanto, ainda que a vacinação decorra "de forma muito favorável" e a letalidade seja "muito baixa", pediu que se mantenha a "prudência". Em Lisboa e Vale do Tejo, por exemplo, a situação ainda inspira cautelas.
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Ainda assim, a palavra de ordem é prosseguir a reabertura. Nesse sentido, Raquel Duarte, da Universidade do Porto, propôs a criação de três novos escalões de desconfinamento - A, B e C -, com restrições mais leves do que as atuais. Um dos objetivos do plano, que irá agora ser analisado em Conselho de Ministros, é pôr fim à limitação de lotação dos eventos exteriores.
O Rt nacional está, atualmente, em 1,11, revelou Baltazar Nunes, do INSA. No entanto, informou Peralta Santos, a mortalidade mantém-se "em níveis muito baixos", situando-se agora nos três óbitos por milhão de habitantes. Henrique de Barros, da Universidade do Porto, acredita que a infeção se tornou "endémica". "Circula muito menos, a carga de infeção é muito mais baixa. Mas temos de estar atentos à natureza cíclica destes fenómenos", alertou.
Baptista Leite, do PSD, considerou "fundamental" fazer tudo para "salvar o verão e preparar o inverno", dizendo que a vacina é a "melhor arma" para tornar o vírus endémico. Moisés Ferreira, do BE, considerou a proposta de desconfinamento "equilibrada".
O PCP defendeu que já não existe "nenhuma justificação" para se manterem restrições. O CDS responsabilizou o ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, e o autarca de Lisboa, Fernando Medina, pelo "agravamento da situação" na capital.
O que disseram os protagonistas
As quatro preocupações de Marcelo
Além da questão do "sacrifício" da economia (ver texto principal), o presidente da República também lamentou a "ausência de qualquer referência" à possível "correlação" entre a incidência do vírus nas faixas mais jovens e os internamentos. Marcelo manifestou ainda a sua "dificuldade em ver o peso imediato" das variantes do vírus no país, sublinhando a necessidade de se explicar a importância da vacinação aos jovens.
Variante indiana na comunidade
João Paulo Gomes, do INSA, alertou que a variante indiana já representa 4,6% dos casos em Portugal, quando há um mês era inexistente. Há 37 casos registados, sendo que a estimativa é de que o total real ronde os 160. "É expectável" que "exista já transmissão comunitária", referiu o perito.
3,6 milhões de vacinas em risco
O coordenador do grupo de trabalho para a vacinação, Gouveia e Melo, disse que o facto de a vacina da Janssen só poder ser aplicada em maiores de 50 anos pode fazer com que Portugal perca 3,6 milhões de doses de vacinas. A 8 de agosto, 70% da população deverá já ter recebido a primeira dose.
272 infetados após vacina, zero mortes
Houve 272 pessoas que foram infetadas com o novo coronavírus já depois de terem completado a vacinação. Destas, 15 tiveram de ser internadas, não se tendo registado qualquer óbito. Para André Peralta Santos, da Direção-Geral da Saúde, estes dados "atestam bem o poder da vacinação na redução da doença".
Manter fronteiras controladas
João Paulo Gomes e Raquel Duarte defenderam que as fronteiras devem ser controladas, como forma de controlar a pandemia e a importação de casos das novas variantes.
Comportamentos estão a mudar
Os comportamentos dos portugueses têm tido "alterações significativas, concordantes com o desconfinamento", segundo um estudo divulgado por Carla Nunes, da Universidade Nova de Lisboa. A especialista deu conta que 16,2% dos inquiridos disseram já ter estado em grupos de 10 ou mais pessoas, contra 1,8% a 19 de fevereiro. 43,8% saíram de casa para trabalhar, contra 17,1% em meados do segundo mês do ano.
Probabilidade de morrer baixou
A probabilidade de se morrer com covid-19 desceu "drasticamente" desde o início da pandemia, disse Henrique de Barros: chegou a ser de um em cinco infetados, mas hoje é de um em 20.