Médica do Porto infetada com covid-19 no primeiro mês da pandemia lamenta a falta de "estruturação e planeamento". Dez meses depois, quer voltar a trabalhar, mas ainda não é considerada para a vacina.
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No início dos inícios da pandemia em Portugal, a 17 de março, quando, segundo indica o relatório da Direção-Geral da Saúde sobre esse dia, havia "só" 20 doentes covid em cuidados intensivos em todo o país, Bercina Candoso, médica, foi um deles. Dos 83 dias durante os quais esteve internada no Hospital de Santo António, no Porto, quase metade foram passados em cuidados intensivos.
Pelo caminho, de que guarda pouca memória, teve três pneumonias, perdeu 10 quilos e 70% da massa muscular, caiu-lhe metade do cabelo e deixou de comer porque não conseguia engolir. Surpresa: era saudável, sem fatores de risco, "não tinha gripes nem constipações há mais de 30 anos". Ao fim de mais de 10 meses desde que adoeceu e de sete desde que saiu do Centro de Reabilitação do Norte, mantêm-se algumas sequelas físicas e emocionais. Mas vive.
"Se fosse hoje, estava morta"
"Se fosse hoje, estava morta". A frase foi repetida por Bercina, 59 anos, obstetra e ginecologista no Centro Materno-Infantil do Norte, numa carta aberta ao primeiro-ministro, publicada na quarta-feira no Facebook. Em conversa com o JN esta sexta-feira, contou que esteve para morrer mais do que uma vez - foram os colegas que a trataram que lho disseram, os mesmos que também não acreditam que o desfecho fosse o mesmo agora. "O investimento que [os profissionais de saúde] fariam em mim agora muito provavelmente não seria o mesmo que fizeram em março. Porque não podem, não têm tempo, não têm mãos a medir, não conseguem dar conta de todos os doentes da mesma forma. Não é a mesma coisa tratar 10 pessoas em cuidados intensivos ou 800 e tal. Os médicos, enfermeiros e auxiliares não aumentaram. Como é que poderiam tratar da mesma forma?"
"País em medicina de catástrofe"
Mais do que um testemunho individual, a carta que escreveu é um "desabafo" perante "um país em medicina de catástrofe, com pessoas a morrer nos hospitais sem assistência", que diz contrastar com o que aconteceu nos primeiros meses. "O meu objetivo principal era mostrar às pessoas o que é uma desgraça que pode acontecer a qualquer um. E, depois, mostrar uma indignação total perante a vacinação de autarcas, deputados que não têm risco absolutamente nenhum, em prejuízo de médicos, enfermeiros, auxiliares de ação médica. Isto não pode ser, é o descontrolo total", lamentou a clínica, ressalvando que não se trata de uma posição política. "Não estou contra ninguém. As principais figuras do Governo e Estado eram-me simpáticas. Estou contra a falta de estruturação e planeamento".
Bercina Candoso ainda tem algum cansaço, algumas sequelas pulmonares, dores articulares e dificuldades de deglutição. Nada que a impeça de voltar ao trabalho, diz. O que impede é, sobretudo, a falta de vacina. Embora tenha estado infetada, já não tem anticorpos, a memória celular que tem é curta para garantir proteção segura, e teme pelas novas variantes e pelo desconhecimento que ainda existe em torno da doença. "O que se está a passar não é aceitável, os médicos não estão vacinados ainda. Eu não sou considerada ainda em listas de vacinação. Queria voltar a trabalhar."