
Domingos Machado
Pedro Correia/Global Imagens
Hospital de Santo António realizou a primeira operação de doação altruísta daquele órgão em Portugal. Iniciativa do nefrologista Domingos Machado permitiu transplantar três utentes.
"Foi um processo de maturação", diz Domingos Machado, aos 70 anos, e pouco mais de um mês depois de ter doado um rim a alguém que não conhece. O nefrologista reformado, com mais de quatro décadas a exercer na área, protagonizou a primeira doação altruísta de um rim em Portugal. A operação foi realizada no último mês no Hospital de Santo António, no Porto, e permitiu gerar três transplantes de rim.
O clínico confessa que teve hesitações, mas, após tanto tempo a trabalhar na área da Nefrologia, maioritariamente no Hospital de Santa Cruz, em Lisboa, considerou que deveria ser possível fazer "uma doação muito livre. Sem saber a quem e sem querer saber a quem", afirma. Tal como quem doa sangue.
O processo começou há cerca de um ano e exigiu uma mudança de normas no que toca à transplantação de órgãos em Portugal. Na regulamentação, já está prevista a doação por familiares e amigos a alguém que conhecem (doação dirigida) ou a doação de um órgão de alguém que faleceu. Nunca existiu o caso de alguém, como Domingos Machado: alguém que doa à comunidade (não dirigida).
"Foram discutidas novas normas com os grupos de trabalho do Programa de Transplantação do Dador Vivo, que, depois, foram feitas ou alteradas pelo Instituto Português do Sangue e da Transplantação", explica La Salete Martins, responsável pela Unidade de Transplantação Renal do Hospital de Santo António.
A colheita do rim foi realizada pelo cirurgião Miguel Silva Ramos, um dos envolvidos na cadeia de transplantes que surgiu após a doação de Domingos Machado. Três pessoas receberam um novo rim através do método de um transplante renal cruzado, que acontece quando um dador não é compatível com o seu familiar, mas é com outro doente. O mesmo pode acontecer com outros pares e possibilitar a transplantação de várias pessoas.
Timing foi crucial
"O dador e os transplantados são sempre seguidos e vigiados em consultas", mesmo após as cirurgias, diz o médico cirurgião do Hospital de Santo António. Antes da colheita do rim, foram realizados vários testes em Domingos Machado.
Estima-se que mais de 600 pessoas estejam à espera de um rim na região Norte, avança La Salete Martins. O tempo de espera ronda os cinco anos para "alguns grupos sanguíneos". No caso do grupo O, o tempo "é superior", revela. Domingos Machado tentou perceber se era elegível, usando a longa experiência na área. A sua própria "luz verde" fê-lo inscrever-se em duas unidades de transplantação, como a lei obriga. Escolheu o Hospital de Santo António para ser operado e foi avaliado no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, para ter dois hospitais independentes a validar a operação.
O "timing" revelou-se crucial. "Foi demorado, porque teve de se avaliar as compatibilidades entre as pessoas. Houve várias datas que tiveram de ser anuladas por alguém da equipa ou dos recetores ter tido covid-19", explica o dador. Mas, finalmente, chegou o dia, que por questões de sigilo o hospital não revela. Sabe-se que ocorreu no último mês.
Domingos Machado nunca saberá quem ajudou, nem os doentes saberão de quem veio o órgão que lhes poderá ter salvado a vida. "Um grupo muito pequeno de pessoas sabia que isto ia ser feito", revela o médico nefrologista, que só contou às filhas e aos netos.
Convencer a doar
A divulgação do caso, diz, só acontece, porque pretende motivar as pessoas que querem doar um rim a um familiar e "estão com dúvidas". Manuela Almeida, responsável pelo Programa do Dador Vivo do Hospital de Santo António, admite que não é fácil para um dador altruísta não ter consciência dos benefícios que a sua iniciativa teve no recetor.
"Se fosse para diminuir a qualidade de vida do dador, não andávamos a fazer transplantes", acrescenta a nefrologista. Domingos Machado, que garante estar saudável, assume que ficou contente por saber que está tudo bem com as pessoas a quem deu uma nova vida.
Balanço
De acordo com o Instituto Português do Sangue e da Transplantação, foram realizados 223 transplantes e havia 1943 pessoas em Portugal à espera de um rim, no primeiro semestre de 2022.
Método
O transplante renal cruzado permite o intercâmbio de rins entre dadores vivos e recetores, que não são compatíveis, mas que podem gerar pares de compatibilidade. Um órgão doado pode gerar várias cadeias de transplantes renais.
Doação
Existe a doação em vida, quando uma pessoa quer doar um órgão ou a doação após a morte, quando a morte é no hospital.

