Ordem revela "aumento significativo" dos pedidos devido à covid-19. Idosos querem garantir habitação ao cônjuge.
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Estão a ser feitos nos cartórios, em casa, em lares ou hospitais. A pandemia que abalou o Mundo levou muitos portugueses e emigrantes a recorrerem aos notários para fazer testamentos. A Ordem dos Notários revela um "aumento significativo", a maior parte nos distritos do Porto e Lisboa. O bastonário, Jorge Silva, defende que "as pessoas, alarmadas, tentaram informar-se sobre o que aconteceria caso falecessem e isso foi muito benéfico".
"Principalmente entre final de março, abril e maio o número de pedidos de informação e de solicitações para realizar testamentos aumentou consideravelmente", diz o bastonário da Ordem dos Notários, Jorge Silva, embora as estatísticas do Ministério da Justiça não reflitam (ainda) isso.
Atraso nos dados oficiais
Segundo os dados cedidos ao JN, enquanto em janeiro e fevereiro o número de testamentos rondava os três mil por mês, em março caiu para os 1600. Mas o bastonário é perentório: "Os números não são fiáveis. O sistema atual é do século XIX, são fichas em papel que se remetem por correio para os registos centrais, que lançam manualmente números de milhares de envelopes". Só no final de cada ano é possível ter dados certos.
O problema pôs a Ordem a trabalhar com o Ministério num sistema digital, necessidade que a pandemia tornou evidente.
"Certo é que nunca tínhamos grandes pedidos para testamentos e tivemos uma série deles nesta fase", sublinha Jorge Silva. Foram procurados sobretudo por pessoas na casa dos 70 anos, casadas. "Procuram fazer um testamento em que cada um deles beneficia o outro, para assegurar o usufruto da habitação. Estão preocupados".
Segundo o bastonário, "se alguém falecer sem testamento, tem que se fazer uma partilha e uma parte é dada aos filhos. Se o único bem que tem é a casa, em última análise é vendida para distribuir pelos filhos".
E há casos típicos de pandemia. "Tivemos situações de urgência com pessoas que estavam infetadas ou não e com medo", diz o bastonário. Desde o início e até agora, os notários já se deslocaram a lares, hospitais ou a casa das pessoas. "Havia receio dos mais velhos saírem de casa. E foi-se resolvendo".
medo precipitou decisão
O fenómeno sentiu-se em vários lares, como na Santa Casa de S. João da Madeira, onde "os notários estiveram por duas vezes". Segundo Vítor Gonçalves, diretor de serviços da instituição, "a deslocação dos notários não é muito comum, mas não é inaudita". Desta vez, foi o receio da pandemia que incentivou. "Foram dois idosos nos 80 anos. Tinham patologias e sentiram medo que algo acontecesse". A instituição disponibilizou um espaço higienizado e equipamentos de proteção individual. "É possível fazer", diz.
Entre os 434 balcões pelo país, e mesmo com 40% da rede fechada no confinamento, o bastonário diz que "correu muito bem, foi possível fazer quase tudo". Mas o "pânico" ainda não acabou. No verão, mesmo com a quebra na vinda dos emigrantes, a procura por esta população também se fez sentir. "Foi muito importante que as pessoas se informassem", conclui.
Quando as pessoas sentiram a pandemia a chegar, ficaram com medo
Movimento começou a registar-se logo em março com mais idas ao cartório. Depois, acumularam-se pedidos no confinamento e houve novo boom com a reabertura dos lares.
Ainda o país não tinha entrado em confinamento quando Olga Samões, notária em Amarante, começou a sentir um boom de pedidos para testamentos. Desde então, já foi a lares ou a casa de clientes e não se lembra, em quase 20 anos de carreira, de tanta procura. Tudo devido à pandemia que fez aumentar o receio da morte na população mais velha. "Mas também há gente nova a acautelar situações", relata.
"Logo no início, no final de março, foi a loucura. Quando as pessoas sentiram a pandemia a começar, ficaram com medo", conta. Nessa altura, os clientes deslocavam-se ao cartório e Olga chegou a fazer três a quatro testamentos por dia.
"Até testamentos cerrados - são escritos pela mão do testador e o notário não conhece o conteúdo - que já não é assim tão comum, fizemos. Pelo menos três de rajada". Esse foi o primeiro pico, mas depois veio o confinamento. "Os lares fecharam e foi um grande problema. As pessoas queriam fazer e não podiam. Porque nestas idades o receio aumenta muito", conta a notária.
O desconfinamento abriu as portas a mais uma corrida, principalmente com a reabertura das visitas nos lares. Foi o segundo pico e Olga deslocou-se mais que uma vez. "Fiz logo um no dia em que foi permitido. Mal abriram, foram testamentos uns atrás dos outros, porque Amarante também é um concelho algo envelhecido". Foi à Santa Casa e a outros lares também.
Investiu em proteção
"Correu muito bem, houve muito cuidado. Já tinha feito testamentos em lares, normalmente íamos ao quarto das pessoas. Agora, houve o cuidado de trazer as pessoas à entrada, com distanciamento, máscaras, viseiras, luvas. Até porque se trata de um grupo de risco".
Conta pelo menos dez visitas a lares para testamentos. "Foram muitos para um tão curto espaço de tempo e não é algo assim tão comum".
A faixa etária típica ronda os 70 anos, mas também foi procurada por pessoas de 40. "E fomos a casa de uma pessoa acamada. Aí foi mais complicado, porque tive que ir ao quarto da senhora, mas investimos em equipamentos de proteção". A maior preocupação de quem procura deixar escrita a sua vontade sobre os bens é por casais que querem garantir ao cônjuge o usufruto da habitação. "Tem sido mais patente do que era antes. E a verdade é que as pessoas estão muito mais informadas e predispostas a fazer testamentos".
É esse o lado positivo da pandemia, garante a notária. "Há mais procura de informação, o que é muito bom". No verão, Olga sentiu ainda um outro boom, com o regresso dos emigrantes. "Amarante é um concelho típico de emigração e tenho feito vários testamentos a emigrantes, que estão a ter cada vez mais noção do novo regulamento europeu. Até por pessoas mais novas que querem fazer testamento cá em Portugal, motivados pela pandemia", conta.
Mas o movimento ainda não acabou. "Já temos mais testamentos marcados. Há muito mais frequência destes pedidos. E ainda bem".