Em 2022, as dificuldades financeiras impediram 51% das famílias mais desfavorecidas de comprar todos os medicamentos. Nunca foi tão grave. O pior registo datava de 2013, quando 21% das famílias mais pobres reportaram aquela barreira no acesso à Saúde.
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"Face aos anos pré- pandemia, 2022 sinaliza um agravamento substancial para as famílias mais desfavorecidas interrompendo a evolução favorável deste indicador", refere o relatório Acesso a Cuidados de Saúde 2022 - As escolhas dos cidadãos no pós-pandemia, apresentado esta manhã de terça-feira em Lisboa.
Entre 2013 e 2019, a proporção de famílias mais desfavorecidas que não conseguia adquirir todos os medicamentos prescritos pelo médico estava em queda, "passando de 21% em 2013 para 12% em 2017 e 10% em 2019".
Porém, em 2022, a tendência inverte-se "de forma expressiva, com a proporção de famílias desfavorecidas que reporta não ter adquirido todos os seus medicamentos a ultrapassar os 50%", refere o estudo dos investigadores Pedro Pita Barros e Eduardo Costa, elaborado no âmbito da Iniciativa para a Equidade Social, uma parceria entre a Fundação "la Caixa", o BPI e a Nova SBE.
Segundo os autores, "a subida expressiva nas dificuldades destas famílias pode estar associada a diversos fatores". Pode estar influenciada por uma mudança da composição das classes socioeconómicas e pelas mudanças de definição das próprias classes de vencimentos que possam existir nos inquéritos feitos nos diferentes anos. Ainda assim, a falta de dinheiro e o aumento da doença, em populações mais vulneráveis, parecem ser uma explicação evidente num dos países da União Europeia com mais famílias (5,7%) a reportarem necessidades não satisfeitas em saúde.
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15% da classe média-baixa também com dificuldades para aviar receitas
"De qualquer forma, uma menor disponibilidade financeira para as famílias mais pobres desde o início da pandemia, associado a uma maior incidência da doença podem contribuir para explicar o aumento destas dificuldades", reconhecem os investigadores. Lembrando que, "em Portugal, as despesas diretas de saúde realizadas pelas famílias no momento da prestação de cuidados de saúde são bastante elevadas face aos restantes países europeus".
Relativamente às outras classes socioeconómicas, as dificuldades de acesso a medicamentos são menos expressivas. Em 2022, as famílias das classes média (0,3%) e média-baixa (15%) reportaram não terem adquirido todos os medicamentos que deviam por falta de disponibilidade financeira. Nas classes mais elevadas, apenas 2% afirmaram não ter aviado todos os fármacos que o médico prescreveu.
Mais desfavorecidos recorreram mais aos genéricos
Perante o aumento das dificuldades, sobretudo entre os mais vulneráveis, assistiu-se a uma crescente substituição dos medicamentos de marca por genéricos. "Nas duas classes socioeconómicas mais desfavorecidas, verifica-se um aumento da proporção de famílias que pediu a substituição em 2022 face ao período pré- pandemia", refere o estudo. Em 2019, 33% das famílias mais pobres optaram por genéricos; em 2022, a proporção aumentou para 56%.
Receita após consulta hospitalar fica por 27 euros em média
Os gastos com medicamentos são a despesa mais significativa das idas a consultas nos cuidados de saúde primários (CSP) ou hospitalares. Em 2022, as famílias gastaram em média 19,8 euros em medicamentos associados à consulta no centro de saúde e 26,7 euros na sequência de uma consulta hospitalar. A despesa com transportes - 2,4 euros para o centro de saúde e 6,9 euros para o hospital - e com taxas moderadoras (entre 90 cêntimos nos CSP e 5 euros no hospital) ficou muito abaixo.
"As taxas moderadores representam uma fração muito pequena, e cada vez mais pequena, das despesas associadas a idas e cuidados de saúde primários ou a urgências hospitalares", realçam os investigadores.
Além das barreiras financeiras e não financeiras no acesso aos cuidados, o relatório incide também sobre as decisões dos cidadãos no primeiro contacto com o sistema de saúde, analisando a incidência dos episódios de doença, a decisão de aceder ou não aos cuidados e a prestação no setor público e privado.
Episódios de doença aumentaram em 2022
Relativamente à incidência dos episódios de doença, o estudo revela "valores anormalmente baixos" para os anos da pandemia, com uma subida expressiva em 2022. Neste ano, 40% dos inquiridos revelaram terem-se sentido doentes pelo menos uma vez, em contraste com os registos de 2020 (27%) e 2021 (30%).
As pessoas com rendimentos mais baixos e idade mais avançada estão associadas a uma maior probabilidade de se terem sentido doentes pelo menos uma vez no ano passado.
Em 2022, cerca de 14% da população optou por não recorrer ao sistema de saúde, na sequência de um episódio de doença. Os autores acreditam que tal pode "sinalizar a perceção por parte dos cidadãos de uma dificuldade de aceder a cuidados de saúde, levando a que alguns optem por não os procurar", mas pode haver mais justificações.
43% optaram pela automedicação
Em alternativa a irem ao médico, 43% optaram pela automedicação e 57% decidiram esperar que a doença melhorasse. O aumento das infeções covid-19, no final de 2021 e início de 2022, juntamente com as recomendações das autoridades de saúde para não recorrer ao sistema de saúde em casos de doença ligeira, podem explicar o aumento dos episódios de doença e das decisões de não contactar o sistema de saúde.
Os investigadores analisaram também a prestação de cuidados de saúde nos setores público e privado e concluíram que houve um aumento do recurso ao serviço público, que decorreu em grande medida pela maior utilização da linha SNS24 (3% em 2019 para 28% em 2022).