"É bio! Venha comprar, freguês, que é bio!" Não há hiper, super ou minimercado que não tenha uma secção reservada a produtos de origem biológica, acompanhados por um selo verde de certificação europeia atrativo para os consumidores que se consideram amigos da consciência alimentar e da sustentabilidade.
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Agarradas à ideia de que a produção biológica é, em todos os casos, mais benéfica para a saúde humana e para o ambiente do que a convencional, são cada vez mais as pessoas que compram biológico. Mas será essa a melhor alternativa para uma agricultura saudável para a Natureza e para nós, seres humanos? Às vezes, mas não será sempre.
Consultando o regulamento da União Europeia relativo à produção biológica, lê-se que a agricultura biológica "combina as melhores práticas em matéria ambiental e climática", privilegiando a "biodiversidade" e a "preservação dos recursos naturais", e aplicando "normas exigentes em matéria de bem-estar dos animais (...) e de produção", "através da utilização de substâncias e processos naturais".
Esse sistema de produção, explica Ana Aguiar, professora de Agronomia da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, chegou como um "movimento muito disruptivo" e com "regras muito bem definidas" ao nível dos sistemas de cultura, tendo surgido como uma "reação a uma agricultura convencional, que assenta na utilização intensiva de fatores de produção, como pesticidas e fertilizantes".
"A agricultura biológica usa menos fatores de produção e vai buscar técnicas antigas", defende a docente, sintetizando a regra fundamental que é vendida aos consumidores: "Pode usar-se tudo o que é de origem natural, não se pode usar tudo o que é de origem sintética."
Significa isto que, na generalidade, "pesticidas ou fertilizantes produzidos em fábricas não podem ser usados", ao contrário de um pesticida que tenha origem natural, como "uma planta que é macerada e usada para fazer uma calda", e de um fertilizante natural, "como os estrumes e os chorumes".
E a falácia começa aqui.
Primeiro, porque não é por ser natural que é saudável. "A Natureza tem coisas muito mais perigosas do que o que nós, agrónomos, produzimos de síntese, ou aquilo que as fábricas produzem. Há muitas plantas muito perigosas", garante Ana Aguiar.
Ao nível dos pesticidas, complementa o engenheiro agrónomo Mário Cunha, docente da mesma Universidade, a agricultura biológica utiliza substâncias naturais "que têm um impacto muito grande no meio ambiente, que são muito solúveis, podem atingir facilmente o meio aquático. Só por serem naturais, não significa que sejam boas".
Inutilização de químicos é marketing
Segundo, porque nem todas as substâncias usadas são naturais. De acordo com Mário Cunha, doutorado em Ciências Agrárias, a agricultura biológica "também utiliza pesticidas que são sintetizados (fabricados em laboratório), como substâncias à base de cobre, à base de enxofre, à base de permanganato de potássio", que são substâncias que, apesar de partirem de elementos naturais, "não correm na Natureza". Por isso, remata, a ideia de que a agricultura biológica não usa químicos - naturais ou de síntese - "é, de facto, marketing".
A própria regulamentação europeia autoriza a utilização de "determinados produtos fitossanitários (vulgarmente conhecidos como pesticidas), em condições específicas e precisas, desde que sujeita a controlo", atendendo às práticas tradicionais da agricultura, às condições climáticas existentes em certos Estados-membros da UE e à inexistência de alternativas viáveis.
Sempre que não seja possível proteger as plantas das pragas e doenças através de medidas preventivas [proteção dos inimigos naturais, escolha das espécies e variedades, rotação das culturas, técnicas de cultivo e processos térmicos] e em caso de ameaça comprovada para uma cultura, apenas podem ser utilizados os produtos fitofarmacêuticos detentores de autorização de venda em Portugal e cujas substâncias ativas se encontrem permitidas em agricultura biológica (ver lista)", esclarece a Direção-Geral de Agricultura e Desenvolvimento Rural.
Saúde e ambiente são bandeiras para o bem e para o mal
"Na generalidade, podemos dizer que o biológico é mais respeitador do ambiente, porque está limitado na utilização de pesticidas e fertilizantes que, muitas vezes, trazem problemas para o ambiente, para as águas, para os solos", defende Ana Aguiar.
Existe um debate muito pouco democrático
Mário Cunha discorda. Para o investigador do Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores, Tecnologia e Ciência (INESC TEC) e autor de vários estudos científicos sobre Agronomia, existe um "debate pouco democrático, porque se utiliza a pouca informação que as pessoas têm do ponto de vista agronómico e do processo produtivo, no sentido de ter um fluxo de vendas maior e preços mais elevados".
"As pessoas têm a ideia que a agricultura convencional é muito ligada aos pesticidas, à poluição do ambiente, à monocultura. Por isso, a comparação é com uma referência que já está ela própria contaminada", adverte o investigador, acrescentando que a agricultura biológica é vendida como uma "agricultura sem químicos e isso não é verdade".
Interessa que tenha lógica
A agricultura biológica "tem tantos problemas como qualquer outro modo de produção. Tenta usurpar todo esse capital na saúde publica e ambiental que não é, de facto, verdade", garante o docente, lamentando a crescente tendência de "adjetivação da agricultura". "Não interessa se é biológica, interessa que tenha lógica".
Produção convencional também cumpre regras
O especialista acrescenta que os pesticidas sintéticos usados na produção convencional são submetidos a uma quantidade infindável de testes antes de serem comercializados. "Antes de uma substância sintética ativa ser colocada no mercado, tem um processo de testagem enorme, que permite que o produto final seja seguro. São testes com abelhas, testes com coelhos, anos e anos de investigação sobre aquela substância ativa."
"Sob o rótulo de que são naturais", os produtos biológicos têm, a nível mundial, um processo de homologação "muito mais flexibilizado", sem o "mesmo rigor", o que pode ser "um problema muito grande de saúde pública", alerta o especialista do Centro Operativo e Tecnológico Hortofrutícola Nacional.
Ana Aguiar acrescenta que a agricultura convencional de hoje "só utiliza os produtos químicos na dose certa, na concentração certa e respeitando o intervalo de segurança, que é o intervalo de tempo desde a última aplicação até à colheita". Essa lógica garante que o produto final que vai para o mercado "tem resíduos abaixo daquilo que é considerado prejudicial". "Isto porque resíduos zero pode não existir, até mesmo na agricultura biológica", atira.
Limitação de alternância de substâncias pode ser problemática
Enquanto há um leque grande de substâncias sintéticas ativas, muito testadas, que podem ser alternadas, a agricultura biológica, ao ser mais restritiva ao nível dos fatores de produção, tem de "utilizar sempre as mesmas".
O cobre é um "contaminante problemático nos solos e no fígado humano"
"Há uma repetição muito grande dos mesmos pesticidas. Temos cobre, enxofre e permanganato de potássio, são três substâncias para fazer o tratamento das culturas. E nós sabemos que, se não fizermos alternância das substâncias ativas, corremos o risco de criar resistências nos próprios inimigos das culturas", explica Mário Cunha.
"O que é que é melhor? Utilizar duas vezes uma substância ativa sintética como fossilizo de alumínio ou quatro vezes cobre? É muito difícil dizermos. O cobre tem um problema de acumulação muito grande nos solos, acumulação no fígado", afirma.
Há estudos que contrariam ideia dos consumidores
Acumulam-se investigações e estudos científicos que comparam o impacto que a produção biológica e a convencional têm no ambiente. Os métodos e os alvos de estudo são vários e as conclusões também. No essencial, os resultados dependem dos produtos analisados e do tipo de análise que é feita.
Uma investigação científica publicada em 2012 por cientistas da Universidade de Oxford, que analisou 71 estudos publicados sobre o tema, mostrou que a agricultura biológica exige menos energia e é geralmente melhor para a vida selvagem e para a biodiversidade, mas não tem necessariamente menores impactos ambientais do que a convencional. Apesar de ter um impacto mais positivo por unidade de terra, a conclusão é contrária se pensarmos em unidade de produção. Isto porque o biológico necessita de mais quantidade de terra para produzir a mesma quantidade de produtos, principalmente por causa da limitação na utilização de fertilizantes.
Além disso, a revisão concluiu que, embora a carne de vaca e as azeitonas biológicas tenham emissões de carbono menores do que as convencionais, algumas variedades biológicas - como o leite, os cereais e a carne suína - têm maiores emissões por unidade de produto do que as que sofreram um melhoramento. "As variedades da agricultura biológica muitas das vezes estagnaram, por isso têm uma emissão de dióxido de carbono muito maior", explica o docente Mário Cunha.
O algodão biológico também é um bom exemplo, uma vez que precisa de mais água, por não ser uma "variedade melhorada". "Quando se faz um melhoramento, faz-se uma eficiência do uso da água. As variedades tradicionais (usadas na agricultura biológica) poderão ter outras vantagens, mas não incluíram o melhoramento", explica Mário, concordando que "muito provavelmente, uma camisola de algodão biológico gastou mais água e custou mais ao ambiente do que uma camisola de algodão convencional, o que então houve uma produtividade tão baixa que foi preciso uma área muito maior para produzir a mesma camisola".
Emissões de dióxido de carbono divide especialistas
Um estudo mais recente, da Universidade de Tecnologia de Chalmers, na Suécia, publicado na revista Nature a 13 de dezembro de 2018, concluiu que as ervilhas biológicas e o trigo de inverno têm, respetivamente, mais 50% e 70% de emissão de carbono que os convencionais. "O maior uso da terra na agricultura biológica leva indiretamente a maiores emissões de dióxido de carbono, graças ao desflorestamento", justifica Stefan Wirsenius, coautor do estudo, acrescentando que o uso da terra "não tem sido tido levado em consideração em comparações anteriores entre alimentos biológicos e convencionais".
Solos mais férteis
Por outro lado, o diretor da empresa portuguesa Agrobio disse ao JN que "a prática de agricultura biológica leva ao aumento da fertilidade dos solos", acrescentando que "um solo mais fértil produz mais com menos recursos (água e energia)".
"A agricultura biológica usa menos água doce (recurso cada vez mais escasso) e menos combustíveis fósseis (cuja produção e uso são responsáveis por grande parte da emissão de gases com efeito de estufa), logo contribui menos para as alterações climáticas e está mais próxima de contribuir para a neutralidade carbónica", disse Jaime Ferreira.
Alimentos biológicos são mais nutritivos?
Os consumidores têm a perceção de que alimentos produzidos organicamente contêm mais nutrientes do que alimentos produzidos convencionalmente. Uma revisão sistemática de 55 estudos de "qualidade satisfatória" publicados entre 1958 e 2008 sobre a qualidade nutricional de alimentos biológicos e convencionais não encontrou diferenças em 8 de 11 nutrientes. Apenas três apresentavam valores distintos, "sobretudo devido a diferenças nos modos de produção": nitrogénio (mais alto em produtos convencionais), fósforo e ácido titulável (ambos em alimentos biológicos).
Uma revisão sistemática mais recente concluiu que as publicações sobre a matéria "carecem de forte evidência de que os alimentos biológicos sejam significativamente mais nutritivos do que os convencionais", com exceção para o fósforo. Concluiu, por outro lado, que o consumo de alimentos biológicos pode reduzir a exposição a resíduos de pesticidas e bactérias resistentes a antibióticos.
E têm melhor sabor?
A ideia de que os produtos biológicos têm melhor sabor que os outros "não está provada cientificamente". E, a ser verdade, pode nem sequer estar relacionada com as substâncias usadas na produção. Ana Aguiar explica: o agricultor biológico não tem as ferramentas que tem o agricultor convencional. "Não tem pesticidas para se socorrer caso apareça uma doença das plantas. Isso faz com que esteja mais limitado a produzir biológico, (fazendo-o) apenas na época das culturas, onde o risco de aparecer alguma doença é menor. E, ao fazer na época, à partida os produtos são melhores. Mas não se pode dizer que são melhores por serem biológicos, são melhores por serem da época", sublinha.
Já Jaime Ferreira, da Agrobio, diz que os produtos biológicos "têm em média mais 20% de extrato seco (menos água), logo têm o sabor mais concentrado".
Porque é que são mais caros?
A principal razão, explica Jaime, pós-graduado em Produção Agrícola Tropical, prende-se com "a distribuição e a logística, dada a dispersão das explorações face aos locais de consumo".
Quem controla?
Em Portugal, cumprindo o regulamente imposto pela UE, que pressupõe a certificação obrigatória, o agricultor/transformador tem de contratar um organismo de controlo (ver lista). "A certificação é ainda supervisionada pela Direção-Geral de Agricultura e Desenvolvimento Rural (DGADR) e pelo Instituto Português de Acreditação (IPAC)", diz Jaime Ferreira, adiantando que a ASAE tem um plano de controlo anual específico para os produtos biológicos, "que têm ainda de cumprir toda a legislação de caráter geral que abrange as outras formas de produção".
Produção biológica em ascensão em Portugal e na Europa
Segundo dados da Direção-Geral de Agricultura e Desenvolvimento Rural do Ministério da Agricultura, havia, no final de 2017, 4674 produtores de agricultura biológica e 5654 operadores (que engloba também processadores, importadores, exportadores e outros). Na mesma altura, em Portugal, havia 253.786 hectares de produção biológica ou em conversão.
De acordo com dados da Eurostat, os 28 estados-membros da União Europeia tinham, em 2015, uma área total de 11,1 milhões de hectares de agricultura biológica, um aumento de cinco milhões desde 2002, que representa 6,2% da área agrícola europeia. Durante a última década, a área cultivada com produtos biológicos aumentou cerca de 400 a 500 mil hectares por ano. O mercado de produtos biológicos da UE vale cerca 27 mil milhões de euros, ou seja, mais 125 % do que há dez anos.