“Muitas vítimas de abusos sexuais descompensaram durante a Jornada da Juventude”
Rute Agulhas, coordenadora do grupo VITA, diz que “muitas das vítimas” de abuso sexual da Igreja Católica “descompensaram durante a Jornada Mundial da Juventude”.
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A psicóloga Rute Agulhas partilhou, esta manhã de segunda-feira, algum do trabalho que tem vindo a ser realizado pelo grupo VITA, desde maio, quando a estrutura de apoio às vítimas de abuso sexual da Igreja Católica foi criada. Na ação de sensibilização online “Violência sexual no contexto da Igreja: Perspetivas sobre as vítimas e sobre os agressores”, disse que, com os “56 pedidos de ajuda” que receberam até agora perceberam que a violência sexual praticada na Igreja Católica tem “um impacto muito maior” do que quando praticada noutro contexto.
“Estamos a observar que situações pontuais, com comportamentos até muito pouco intrusivos, sem penetração, como carícias ou manipulação dos órgãos genitais, que nos levariam a pensar que o impacto não seria muito significativo, é muito superior. Comparando com outras situações que vemos fora do contexto da Igreja, o impacto é muito pior”, revelou, apontando uma justificação. “O agressor, esta figura muito endeusada e divinal, ser alguém da Igreja parece ser um fator que agrava o impacto”.
Numa ação de sensibilização direcionada a advogados, que decorreu na plataforma de videoconferências Zoom, a psicóloga alertou para a dificuldade que é denunciar este crime, relacionada com sentimentos de culpa e vergonha e desconfiança no sistema de justiça por parte das vítimas, assim como para as dificuldades do próprio sistema de justiça “em perceber que não é simples contar”. A esmagadora maioria das pessoas que ligam para a linha telefónica do grupo VITA são adultos que sofreram abusos há várias décadas.
“A situação que demorou mais tempo a ser revelada foi a de uma senhora de 82 anos, que demorou 70 anos a quebrar o silêncio e tinha 12 na altura. Muitas destas pessoas vêm motivadas com a ideia de que não querem morrer sem contar a alguém. Estamos a falar de pessoas que vivem uma vida inteira com este segredo, que tentam esquecer, mas naturalmente não conseguem”, contou, acrescentando que “a estratégia” utilizada pelos agressores da Igreja Católica era “muito poderosa”. “Diziam que era a vontade de Deus. Era alguém com uma aura divinal, questionar isso era completamente impensável”.
Entre as vítimas que estão a acompanhar, informou ainda, estão “a encontrar muitas que de uma forma muito prevalente deixaram de acreditar em Deus”. “Muitas nunca mais entraram numa igreja, têm ativação fisiológica só de ouvir o sino a tocar e não conseguem sequer passar na rua onde existe uma igreja”, exemplificou Rute Agulhas.
"Tivemos muitas vítimas a descompensar durante a Jornada Mundial da Juventude", revelou. “Muitas delas pediram ajuda nessa altura porque tudo era Igreja de manhã à noite, e os estímulos associados ativam estas memórias. Traz todo um sofrimento e para algumas pessoas trouxe a capacidade de pedir ajuda”, lembrou a altura em que o número de pedidos de auxílio aumentou.
Capacitação da Igreja
A coordenadora do grupo VITA, criado para apoiar e encaminhar vítimas de abusos sexuais na Igreja Católica portuguesa, avançou ainda que “o foco deve ser preventivo” e, por isso, estão "a desenvolver quatro estudos de investigação em articulação com o ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa e programas de prevenção primária que irão ser testados e implementados nos vários contextos da Igreja”. “Temos um nível seguinte de formação e capacitação das estruturas da igreja para que possam ficar não só para prevenir, mas também para lidar com estas situações”.
Ricardo Barroso, psicólogo que vai acompanhar o tratamento dos abusadores sexuais da Igreja no grupo VITA, alertou para a importância de "os agressores serem seguidos do ponto de vista terapêutico, ao longo da vida", nos casos em que há tendência de o repertório sexual se manter para sempre. “É preciso dar resposta do ponto de vista da intervenção. Não são meras consultas como outras quaisquer, exigem uma especialização própria. O próprio grupo VITA tem vindo a dar especialização a psicólogos e psiquiatras para lidarem com esta população porque requer um trabalho próprio”, explicou.
O grupo VITA avançou ainda que, apesar de muitos dos processos já terem prescrito, "têm encaminhado muitas situações para a Procuradoria-Geral da República com conhecimento da Polícia Judiciária para as entidades competentes definirem essa prescrição”.