No Dia Mundial da Criança, Manuel António Pina foi entrevistado, na redação do JN, por "repórteres" da escola EB 2/3 Augusto Gil, Porto, e fala da sua relação com a escrita.
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Existe uma grande preocupação com as letras... Por que razão?
Letras e palavras, não é? Por um lado, porque gosto de palavras e de letras, e por outro... Por que gosto de palavras? Desde pequenino sempre tive uma relação muito próxima com as palavras e descobri desde miúdo que as palavras têm um poder fantástico, maravilhoso... As palavras não servem só para dizermos coisas, para descrevermos coisas e os nossos sentimentos... As palavras criam mundos... As palavras não servem só para dizer "o gravador, o papel, a caneta, a Luísa, a Mariana, a Mariana". Dá-me para eu inventar a Mariana três e a Mariana quatro, pôr o papel a escrever na caneta... Não só servem para dizer, descrever o Mundo, mas também para criar mundos... E descobri isso quando era muito miúdo, mais novo até que vocês. Eu fazia jogos e brinquedos com casca de pinheiros da mesma maneira que com as palavras inventava coisas. Sempre gostei muito das palavras... E depois tive uma sorte enorme - que espero que vocês também tenham -, toda a minha vida, profissionalmente, acabei por trabalhar com palavras. Trabalho aqui há 40 anos, se calhar é a idade dos vossos pais. O meu trabalho é com palavras... Tive essa sorte. Trabalhar com uma coisa de que gostava e é natural que eu goste de fazer jogos de palavras... A fazer jogos de palavras encontram-se coisas fantásticas, há palavras que são amigas umas das outras, que se dão bem umas com as outras e gostam de estar juntas, há palavras que se detestam, outras que funcionam mal, que estão sempre a acotovelar-se... E isso é um Mundo fantástico, um mundo maravilhoso e ao mesmo tempo misterioso... Às vezes - e tenho quase a certeza de que já vos aconteceu -, as nossas palavras dizem coisas que nós não queremos dizer, como se começassem a falar sozinhas... Falam pelos seus próprios meios e isso é também uma aventura permanente. Não podemos dominá-las muito, ficam triste... Como vocês, se começarem a controlar muito a vossa vida diária, ficam tristes, deprimidas... Com as palavras é igual, é preciso dar-lhes liberdade, mas também não se pode deixá-las a falar sozinhas ou começam a dizer o que não queremos, em vez de falarmos nós.
Lemos o livro "O tesouro", no qual fala muito de Liberdade e de Democracia. Essas duas coisas coisas têm muita importância para si?
Têm... acho que têm para toda a gente ou para algumas pessoas. Esse livro foi feita para o 20.º aniversário do 25 de Abril, foi uma encomenda que me foi feita. Normalmente, escrevo quando me apetece, mas a regra nestas coisas é muitas vezes não haver regra. E um dia, a comissão que estava a organizar os 20 anos do 25 de Abril... Já havia jovens da vossa idade que não sabiam o que era o 25 de Abril e a comissão convidou-me para fazer isso, numa sexta-feira. Não sei se sou capaz, disse, mas vou tentar explicar aos mais jovens o que foi o 25 de Abril, que foi um dia memorável, foi uma experiência... Valeu a pena viver só para viver aquele dia. Disseram-me que era para segunda-feira e era sexta... E o que saiu foi aquilo. É um livro com muitas, muitas edições, já vai em 20 ou 30... Só nessa altura, a Associação 25 de Abril vendeu mais de 150 mil exemplares antes de chegar ao mercado e agora foi editado pelo Campo das Letras e agora vai ser reeditado... A minha ideia e a minha preocupação a fazer esse livro era explicar a jovens que nasceram em liberdade o que era a falta de liberdade... No livro, diz lá assim: "A liberdade é como o ar que respiramos"... Nós nem nos damos conta de que respiramos, respiramos e pronto, mas quando nos falta o ar é um sufoco. E a liberdade é uma coisa parecida... vocês nem se dão conta de que são livres, mas quando perdemos a liberdade é um sufoco enorme. E depois queria tentar, através de histórias verdadeiras e de pequenos pormenores, explicar como não haver liberdade é completamente absurdo, não é natural. A razão não consegue alcançar como eram proibidas coisas como, para jovens como vocês, as raparigas não poderem andar nas mesmas escolas do que os rapazes, tinham de estar separadas. A minha mulher foi impedida de ir às aulas e uma colega dela expulsa porque foi de calças para a escola. E a amiga dela foi expulsa porque persistiu... Por que é que era proibido beber coca-cola... É estúpido, não é? Não é completamente estúpido os rapazes não poderem estar nas mesma escola que as raparigas? É sempre estúpido, mas naquele tempo era imposto. Não faz sentido nenhum... Nas bibliotecas, havias duas bibliotecas: uma com livros para raparigas, outra com livros para rapazes. É absurdo. Não podíamos ler os livros e as músicas que queríamos... Hoje, se calhar, nem os vossos pais fazem isso. Imagina, o Estado a dizer esta música é para ouvir, não podes ler aquele livro. E depois quanto mais se proíbe, mais as pessoas querem... Os filmes eram cortados, às vezes mal cortados, e as legendas cortadas... (...) Eram coisas absurdas... A ausência de liberdade é absurda e foi isso que quis dizer nesse livro. Antes do 25 de Abril, por exemplo, neste jornal, não se podia falar em suicídio... Se fosse em Portugal, se fosse lá fora podia publicar-se (...) E muitas vezes escrevia duas páginas e depois não saía nada, saía duas linhas...
Os nossos professores costumam dizer-nos que para sermos escritores temos, primeiro, de ser bons leitores. Concorda?
Concordo... Ler é uma maneira de escrever e de nos escrevermos naquilo que lemos e de nos inscrevermos naquilo que lemos. Por exemplo, se forem ver o mesmo filme ou lerem o mesmo livro, há cenas que vêem de forma diferente, cenas que impressiona mais uma que outra... o que lemos, lemos connosco mesmo, com a nossa cultura, a nossa sensibilidade, a nossa experiência, com a nossa memória... É assim que lemos. As culturas, experiências, sensibilidades e memórias são diferentes de pessoa para pessoa. Tem a ver até com a nossa predisposição do momento... Quando entrei para aqui, entrei para a secção de Grande Porto e fiz muitas vezes notícias de crianças atropeladas e de acidentes com crianças... E fazia-as normalmente, como as outras notícias. Mas a partir do momento em que nasceram as minhas filhas, essas notícias começaram a provocar-me uma angústia imensa. E antes não me acontecia aquilo... E ler é a mesma coisa... Quando lemos, estamos a ler-nos a nós mesmo no que lemos e a reescrevermo-nos no que lemos, a reescrever em nós. Ler é também uma forma de escrever. Por outro lado, escrever é também uma forma de ler... Quem escreve, como eu escrevo, estou a ler-me a mim, à minha sensibilidade, à forma como vejo as coisas que me rodeiam, as minhas memórias... Quando estou a escrever estou a ler-me e a ver o Mundo através da cor dos meus olhos. Entre ler e escrever há relações muito íntimas, de grande intimidade. A escrita também é ritmo e tem ritmos diferentes. Quando escrevemos, a escrita também tem um ritmo e intuitivamente aprendemos os ritmos, as palavras e as técnicas de outros... Sem estudar, naturalmente e isso acaba por nos influenciar. Os livros que li foram importantíssimos para a minha escrita, as maiores emoções - desastres, mortes, amores fatais - foi em livros que li que vivi.
Pode dizer-nos alguns dos autores que o marcaram?
Se calhar são aqueles de que não me lembro os que me marcaram mais. Mas há muitos... Quando tinha a vossa idade, li um livro que me marcou muito, a "Ilíada", e ainda hoje o leio de vez em quando. Alguns livros da Bíblia, um livro para crianças que só li quando tinha vinte e poucos anos, o Winnie the Pooh, do A. A. Milne, e não é o da Disney, é um livro onde a palavra tem uma força fantástica. Só lido... E poetas, Elliot, Fernando Pessoa...
Outro livro que lemos foi o "Pequeno livro dos matemáticos". Considera a Matemática importante na vida das pessoas?
A Matemática é importantíssima. A Matemática é maravilhosa... Há um livro em verso que diz "tão maravilhoso como a Matemática, tão rigoroso como um mágico". A Matemática é uma coisa mágica, porque há uma grande componente de jogo. Estabelecemos relações entre números, quantidades, e mesmo sem relação nenhuma com a natureza, a natureza comporta-se depois de acordo com aquilo... Há quem diga que Deus é matemático.
Como se sente por ser "Prémio Camões"?
Os jornalistas é que fazem essas perguntas... Como querem me me sinta? Sinto-me um bocadinho como um júnior chamado à equipa principal... Porque não esperava nada aquilo, nem sequer sabia que o júri estava reunido...
Reparámos que em muitas das suas entrevistas aparece com um gato...
São os meus gatos, tenho gatos, cães, periquitos... Gosto muito de animais e gosto dos animais todos. Posso dizer que são os meus melhores amigos, não desfazendo amigos de duas patas que tenho... Até costumo dizer que gosto dos animais todos, gosto até de alguns de duas patas, mas não gosto de todos os de duas patas, gosto de alguns. O Homem é o único animal que é desleal.