Altamiro da Costa Pereira, diretor da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP), em entrevista ao JN, critica os partidos: “Não souberam promover as reformas necessárias”.
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O SNS está em “franca decadência”, tem uma gestão ineficiente e a ministra da Saúde está numa missão “quase impossível”. É a visão de Altamiro da Costa Pereira numa entrevista sem tabus a propósito dos 200 anos da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto.
Soubemos esta semana que Ana Paula Martins se manterá como ministra da Saúde. É uma boa ou má notícia para o Serviço Nacional de Saúde (SNS) e para os portugueses?
Eu sou um bocadinho enviesado, porque conheço a Ana Paula há muitos anos e sou até amigo dela. Qualquer ministro da Saúde tem, neste momento, um trabalho que é dificílimo, eu diria que é praticamente impossível porque o SNS tem vindo a não ter as necessárias reformas desde há pelo menos 20 anos. Foram-se acumulando erros e problemas políticos, de financiamento, imensas questões que não foram resolvidas atempadamente e agora quem toma conta dessa pasta está a tomar conta de um serviço que está em franca decadência.
Disse que a ministra tem um trabalho praticamente impossível, acha que o SNS não tem saída?
Tudo tem saída, mas para isso precisava realmente de ser muito reformado e não sei se há vontade política para ter os custos inerentes a essa reforma, designadamente agora que se estão a aproximar as autárquicas. O SNS não tem capacidade instalada para atender aos enormes desafios que enfrenta e à enorme procura que tem. O SNS é vital para o país, mas tem uma gestão muito pouco eficiente.
Essa ineficiência é ao nível das administrações hospitalares ou do Ministério e entidades que gerem o SNS?
Sinceramente, é a todos os níveis. É a todos os níveis porque falta coordenação, falta uma visão estratégica para o SNS. Nos últimos tempos tive oportunidade de ouvir duas palestras, no âmbito dos 80 anos do grupo CUF, que é um grupo privado. A visão que têm e a eficiência com que a implementam no terreno estão muito acima daquilo que existe no SNS.
A direção executiva do SNS não colmatou essa falta de coordenação?
Não. A direção executiva foi uma má medida. Tinha boas intenções, não tenho dúvidas, tenho a melhor impressão do professor Fernando Araújo com quem tive o gosto de trabalhar em diversas circunstâncias. Dito isto, a direção executiva foi quase como um novo Ministério da Saúde. E o problema é que nós já temos muitos ministérios da Saúde, mas que não se articulam com as pré-existências e não se substituem. Qual é a função do ministro da Saúde com o diretor-executivo? Tudo isso está muito mal articulado e não é bom para o sistema. Depois, os problemas são muito regionais, os do Norte não são os mesmos que os de Lisboa e Vale do Tejo e são completamente diferentes dos problemas do Algarve ou do Alentejo. Para mim, a coordenação nacional deve ser feita pelo Ministério, mas com direções executivas regionais com verdadeiros poderes.
Fez parte da Comissão Técnica Independente criada pela ministra para estudar as unidades locais de saúde (ULS) universitárias. Por que é que este modelo não funciona?
Não funciona, nem vai funcionar. Esta articulação forçada dos grandes hospitais ditos universitários – porque já não o eram no meu entender desde pelo menos o final dos anos 90 – com os centros de saúde, não vai acontecer com facilidade. Por isso é que a comissão propôs uma nova visão para estas ULS, que é a visão dos centros clínicos universitários, que espero que este Governo venha a implementar.
E será implementado?
Eu diria que há 50% de hipóteses. O fator positivo é que tanto a atual ministra da Saúde como o atual ministro da Educação estão ambos interessados e sensíveis para esta questão. Mas depois há sempre muitos interesses. Não é por acaso que o SNS está em franca degradação, que os aumentos com os custos da saúde têm sido brutais. Usando uma expressão do professor Adalberto [Campos Fernandes], estamos a viver quase num bar aberto.
E é também de opinião que as megaestruturas, como as ULS universitárias, contribuem para a ineficiência e para este aumento brutal de custos?
Também, mas não só. Porque, nas estruturas mais pequenas, o bar também está aberto. O que tem de haver, obviamente, é um maior controlo. Isto seria impossível num grupo privado porque os acionistas não permitiriam. Mas, infelizmente, os acionistas do SNS, que são o povo português, não têm verdadeiro controlo sobre o Estado.
Portanto, a Saúde precisava de uma gestão privada?
Acho que o SNS precisava de aprender muito com os grupos privados. Mas não é fácil porque os privados têm acionistas que estão atentos e que querem que aquilo funcione para depois poderem receber os seus dividendos. Já o povo português, infelizmente, não tem muitas formas de estar atento. Os seus representantes, acionistas, são a Assembleia da República, mas não têm tido a necessária atenção para colocar o sistema sob uma vigilância mais atenta. Têm demasiados interesses a curto prazo, políticos e por isso temos esta instabilidade. Mas isso também é natural, porque o Mundo já mudou e Portugal está a mudar.
O SNS não soube mudar?
O SNS não conseguiu mudar e não é porque não haja profissionais extraordinariamente dedicados. Quem falhou foram os partidos que estavam e estão no poder. Não souberam promover as reformas necessárias. Por exemplo, a minha mulher é médica, está no último escalão da carreira e vai agora reformar-se. Depois de uma vida dedicada à dermatologia e ao Hospital de Santo António, traz para casa todos os meses menos de dois mil euros. Uma profissional competentíssima, altamente diferenciada, que dedicou toda a vida ao SNS e no final da vida vai ser muito mal tratada porque, por exemplo, nunca fez SIGIC [cirurgia adicional para combater as listas de espera]. Portanto, tudo isto cria uma enorme insatisfação.
E como é que vê esta notícia do médico dermatologista com faturação avultada à custa do SIGIC?
Está a fazer aquilo que, infelizmente, quase todos fazem. Que é usar o sistema e os seus incentivos para maximizar os seus lucros. Não é de maneira nenhuma um profissional isolado. Toda a nossa sociedade está dependente dos incentivos.
O problema é do sistema?
O sistema está profundamente errado. Mas não é de agora, não é do atual Governo, não é da atual ministra. O sistema foi sendo sistematicamente corrompido há muitos anos.
Mas o problema, então, é do sistema corrompido e não de quem o corrompe?
Os portugueses são mestres na adaptação ao sistema. Sempre foram. Arranjam-se, desenrascam-se e maximizam os seus proveitos. Mas o sistema é que está corrompido, isso eu não tenho dúvida nenhuma.
A Faculdade de Medicina vai abrir um mestrado para formação em urgência e emergência. Ajudará a responder à falta de profissionais nas urgências?
Todas as iniciativas ajudam. Esta vai ajudar no segmento da emergência, que é muito importante, mas é restrito. São apenas 20 profissionais, face àquilo que o país necessita não chega para tapar uma covinha de um dente. Mas vamos lá ver, não é possível haver tantas urgências como há. É impossível. A Dinamarca, de um momento para o outro, passou de 40 urgências para 20.
Devíamos fazer o mesmo?
Evidente. Esta ideia de que podemos ter uma urgência tão boa quanto a do Hospital de São João, em Bragança ou em Freixo de Espada à Cinta ou onde quer que seja, não é possível. Nós temos de concentrar os recursos em pontos nevrálgicos do país, mas ao mesmo tempo ter belas redes de referenciação e belas formas de comunicação com essas zonas.
O Governo e ministra não quiseram avançar com a concentração de urgência.
Nunca quiseram, tal como o Manuel Pizarro ou o Fernando Araújo ou todos os precedentes também nunca quiseram, porque isto tem custos políticos e organizativos. Portanto, esta ministra está a sofrer as mesmas pressões e a ter as mesmas dificuldades que todos os outros tiveram. Mas tem de haver [concentração], obviamente. Porque se não houver, nunca o sistema vai funcionar. Nunca. Impossível.
E deve começar pelas urgências de obstetrícia de Lisboa e Vale do Tejo?
Também, sem dúvida nenhuma. Quando foi criada no Porto a primeira urgência metropolitana, para uma série de especialidades, isso foi muito mal visto por diversos hospitais, mas hoje ninguém põe em causa a importância dessas urgências metropolitanas. Mas é o Porto; Lisboa é mais complicado. E não tem havido essa força e essa vontade.
Já anunciou que é candidato ao Conselho Geral da Universidade do Porto (UP) e que se for eleito vai concorrer a reitor. É uma ambição antiga?
Deixe-me corrigir: eu certamente serei eleito para o Conselho Geral, mas não quer dizer que depois seja eleito reitor. O Conselho Geral é como uma pequena Assembleia da República, tem 23 deputados e são eles que elegem o reitor, mas esses deputados estão subdivididos em vários corpos. Os técnicos todos da universidade, que têm uma importância enorme, só têm um representante. Os estudantes têm quatro, os docentes e investigadores têm 12 e há ainda um outro grupo, da chamada sociedade civil, que tem seis. Este é o grupo mais importante do Conselho Geral, mas infelizmente é o que menos sabe sobre a UP e que é mais sujeito a manipulações externas.
E o que é que faria diferente se fosse reitor?
Muitas coisas diferentes. O potencial da UP não está a ser suficientemente aproveitado. Toda a panóplia de instituições não está suficientemente articulada e coordenada. Estamos uns para cada lado. Por exemplo, a área das ciências da saúde, apesar de continuar a ser a que tem mais importância, não tem crescido o suficiente e está quase numa fase de estagnação.