"Não há nenhum país do Mundo que aguente uma pressão destas sobre o serviço de urgência"
"Sem alarmismos", o bastonário da Ordem dos Médicos alerta o Ministério da Saúde para as situações gravíssimas que podem ocorrer nas urgências este verão. Em causa está a saída de médicos internistas dos hospitais que pode gerar ruturas em vários serviços.
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Carlos Cortes tomou posse há um mês e meio e entende que a gestão das maternidades, com funcionamento rotativo há meses, é "um desastre". Em entrevista ao JN e à TSF, critica as "medidas artificiais" que têm sido implementadas e levanta dúvidas sobre a reforma do SNS através das unidades locais de saúde.
A tutela decidiu passar para o fundo da lista os utentes que não têm médico de família e que não recorrem a um centro de saúde há cinco anos. Concorda com esta forma de tratar e diminuir as listas de espera?
Faz muito pouco sentido esta decisão tomada pelo Ministério da Saúde e pela Direção Executiva do Serviço Nacional de Saúde, que têm sido muito imaginativos a tentar encontrar soluções para, de forma artificial, diminuir o número de utentes sem médicos de família. Não é uma boa medida porque pessoas saudáveis, que não têm necessidade de recorrer frequentemente ao médico de família não devem ser discriminadas negativamente por esse facto. E, portanto, é mais uma medida artificial.
A abertura de 978 vagas para contratar médicos de família recém-especialistas é também uma medida artificial?
Não. Esta medida vai de encontro àquilo que a Ordem dos Médicos pediu, publicamente, mas também na reunião com o senhor ministro, há três semanas, onde apontámos propostas que visam tornar atrativo o Serviço Nacional de Saúde (SNS). Quando há ficheiros a descoberto, automaticamente o Ministério da Saúde tem de abrir a vaga, independentemente do local, porque todos os doentes têm direito a cuidados de saúde, sejam eles do Porto, de Lisboa, do Alentejo, do Interior do país.
Ao todo deverá haver 1,6 milhões de portugueses sem médico de família. A Ordem tem alguma solução que possa acrescentar àquelas que estão a ser tomadas, de modo a reduzir este número? De ano para ano, percebemos que a situação se vai agravando porque efetivamente as políticas que foram desenvolvidas nos últimos anos foram completamente erradas, porque o Ministério da Saúde não atendeu às propostas da Ordem dos Médicos. É preciso abrir todas as vagas, melhorar as condições de trabalho, melhorar as infraestruturas para receber os doentes de forma condigna, dar condições aos médicos para investigarem e desenvolverem a saúde em Portugal. E depois tem de haver um aspeto que é também relevante, que tem a ver com a revisão da carreira médica e com a dignificação da profissão. E essa dignificação, neste momento, tem de passar por uma revisão das grelhas salariais. É um assunto sindical, mas o bastonário da Ordem dos Médicos está muito atento porque os médicos têm de ter uma remuneração compatível com o seu elevado grau de diferenciação e o papel de enorme responsabilidade que têm na sustentabilidade do SNS.
Não passa apenas por um aumento do valor das horas extraordinárias, é isso?
Passa, obviamente, por uma valorização do vencimento de base e do reconhecimento. A questão remuneratória é muito importante, mas ter condições de trabalho para tratar os doentes também é. Tal como é importante existirem projetos no SNS para cativar os médicos, para que os médicos consigam melhorar a condição de saúde dos seus doentes. Isso é algo que tem uma capacidade de atração muito, muito grande. Infelizmente, nos últimos anos, o Ministério da Saúde virou as costas aos médicos.
Os serviços de urgência continuam a ser o grave problema do Serviço Nacional de Saúde? Estamos a aproximar-nos do verão, toda a gente está muito preocupada com a situação das urgências de obstetrícia, que são rotativas, sobretudo no Sul. Este é um dos pontos que mais o preocupa?
Tocou, efetivamente, naquela que julgo que é a grande prioridade do país para a saúde: a forma como o país vai organizar ou reorganizar a rede de urgência e como estes serviços vão funcionar. Eu não acho que a urgência seja o problema do SNS, eu acho que o Serviço Nacional de Saúde tem um grave problema. E faço minhas as palavras do diretor-executivo do Serviço Nacional de Saúde, que ainda muito recentemente nos disse que o SNS estava a atravessar, provavelmente, aquele que é o pior momento desde a sua criação em 1979. As dificuldades refletem-se nas consultas do ambulatório, onde temos atrasos absolutamente inaceitáveis em muitas especialidades; refletem-se nos atrasos nas cirurgias e refletem-se na urgência. Aquilo que está a acontecer no serviço de urgência é profundamente errado. Temos de reforçar o que está à volta, a prevenção em saúde e os cuidados de saúde primários, precisamente para evitar que os doentes se dirijam à urgência. Os lares precisam de ter mais formação, precisam de cuidados diferenciados, precisam de um médico a supervisionar esses cuidados e a evitar que os doentes agudizem e vão parar à urgência. Há determinadas situações, obviamente, que têm de ir ao serviço de urgência, mas a maior parte são evitáveis.
Mas defende que só deveriam ir à urgência doentes referenciados pela linha SNS24, INEM ou médico de família?
Nós temos, em Portugal, seis milhões de episódios de urgência por ano e a população é de pouco mais de dez milhões. Não há nenhum país do Mundo que aguente uma pressão destas sobre o serviço de urgência. E é profundamente errado estar a dar uma resposta em saúde, fundamentalmente, através do serviço de urgência. Os médicos estão a ser retirados do internamento, das consultas, das cirurgias, para estarem na urgência. E em muitas unidades locais de saúde há a tendência de colocar os médicos de família na resposta do serviço de urgência. Se retirarmos este atendimento dos cuidados de saúde primários e o centralizarmos na urgência, será o colapso do sistema.
Mas as urgências só deviam atender doentes referenciados?
Tem de haver uma resposta nos cuidados de saúde primários. Seria uma irresponsabilidade, e até uma maldade, eu defender neste momento essa medida, tendo em conta que à volta de 16% dos portugueses não têm médico de família.
Disse que estava preocupado com o facto de os médicos de medicina interna e de outras especialidades estarem a ir para a urgência. No ano passado, a Assembleia de Representantes de Ordem dos Médicos chumbou a especialidade de medicina de urgência. Está disponível para reiniciar este processo ou vai deixá-lo cair?
Sou bastonário da Ordem dos Médicos e tenho de, obviamente, respeitar as decisões internas. Muito recentemente, o órgão máximo decidiu pela não criação desta especialidade.
Portanto, vai respeitar a decisão ainda que esta especialidade seja considerada fundamental para resolver problemas da urgência?
Não posso iniciar o mandato a dizer que não vou respeitar decisões que foram tomadas há seis meses. Mas isso não significa que a Ordem dos Médicos não esteja preocupada com a urgência. E posso dizer que vamos criar internamente um grupo de resposta para a urgência, que vai ajudar o Ministério da Saúde e o diretor-executivo a encontrar as melhores soluções.
Só para clarificar, no seu mandato, a especialidade de medicina de urgência não voltará?
Se há uma coisa de que eu gosto é do diálogo. Se a Ordem dos Médicos internamente entender que esse assunto deve ser colocado em cima da mesa, obviamente que o bastonário voltará a colocar este assunto à discussão. Mas também digo o seguinte, a resolução dos problemas da urgência não se vai fazer com a criação da especialidade. Isso é enganar os portugueses.
Mas é contra ou é a favor da especialidade de medicina de urgência?
Sou a favor de resolver o problema da urgência.
Está a fugir à pergunta.
Não estou a fugir à pergunta. Não sou contra essa especialidade, mas não quero é que seja colocada como a solução milagrosa para resolver o problema da urgência. E não vou entrar neste jogo, que é o jogo dos políticos, que colocam em cima da Ordem dos Médicos o ónus de resolução do problema da urgência. Não é a Ordem dos Médicos que tem essa responsabilidade. É o Ministério da Saúde. Que, aliás, tem todos os instrumentos para o poder resolver.
Qual a sua opinião sobre esta gestão bicéfala da área da saúde, com Manuel Pizarro e Fernando Araújo. É uma boa dupla?
Não sei se é propriamente uma dupla, porque raramente os vejo juntos. Não tenho nada contra esta fórmula de gestão do SNS. Mas devo dizer que tenho as maiores dúvidas sobre muitas das medidas que estão a ser tomadas pela Direção Executiva do SNS.
Quer dar exemplos?
Já falei das unidades locais de saúde (ULS). Há uma reforma em curso, o país está a mudar a forma de gerir a saúde, adotando um sistema que não tem provas dadas. Não há nenhum estudo, nem a nível internacional nem a nível nacional, que diga que as ULS têm sido um modelo de sucesso. Em muitas destas ULS que estão a ser criadas, e em muitas daquelas que já estão criadas, os cuidados primários estão a ser esquecidos. Há uma desvalorização, uma espécie de "downgrade" dos cuidados primários, nas vertentes da medicina geral e familiar e da saúde pública, que depois da pandemia esquecemos completamente. E há muitas ULS no nosso país que não cumprem a lei, que não têm no seu Conselho de Administração um médico, um diretor clínico, que represente os cuidados de saúde primários. A proposta que a Ordem remeteu ao ministro da Saúde, e que vou remeter hoje [sexta-feira] ao diretor-executivo do SNS, é que os conselhos de administração das ULS tenham um médico hospitalar, um médico da medicina geral e familiar e um médico da saúde pública. O que tememos nas ULS é que sejam modelos muito hospitalocêntricos ou, pior do que isso, urgenciocêntricos.
Não há nenhum estudo (...)que diga que as ULS têm sido um modelo de sucesso
Há outras medidas erradas?
Esta gestão que está a ser feita das maternidades e da resposta do SNS é um desastre. Este problema rebentou em junho do ano passado, adotou-se um funcionamento rotativo e, passado quase um ano, temos a mesma fórmula e, provavelmente, no verão será a mesma. Não há neste momento nenhuma resposta concreta, duradoura, para este problema e vamos entrar num período muito complicado. Sem querer fazer alarmismos, estou a lançar um alerta ao Ministério da Saúde e ao diretor-executivo. Vem aí um período difícil e aquilo que me tem sido reportado pelos hospitais é que há ruturas previsíveis em determinadas áreas. Nomeadamente, na medicina interna. Tive uma reunião recente com o colégio de medicina interna, reuni com vários serviços do país e, se não for rapidamente invertida a situação de esvaziamento dos serviços de medicina interna, uma especialidade de primeira linha da resposta à urgência, mas também aos doentes internados, podemos ter aqui situações gravíssimas de rutura nas urgências, no verão e no inverno.
Esta gestão que está a ser feita das maternidades e da resposta do SNS é um desastre
Anunciou recentemente que a Ordem ia criar um canal para denúncias anónimas, por negligência médica. Porquê o anonimato? Os médicos têm receio de denunciar más práticas?
Não é um canal de denúncia anónima, é um canal em que quem faz a denúncia, se assim o entender, pode fazê-lo de forma anónima. Este canal informático, que estará disponível no site da Ordem dos Médicos, vai garantir que médicos ou não médicos possam fazer a sua denúncia, com confidencialidade, e que a queixa chegará aos órgãos da Ordem dos Médicos e terá uma resposta. A Ordem irá analisar todos esses casos internamente e, se assim o entender, irá reportar ao Ministério Público, à Entidade Reguladora da Saúde, ao Ministério, à Inspeção-Geral das Atividades em Saúde, a todas as entidades que possam ter intervenção nessa matéria.
Como no caso recente do Hospital de Faro.
Foi o que fizemos em Faro. Passados dois dias, a Ordem dos Médicos, talvez de forma inédita, criou uma comissão independente, na qual está incluído o colégio de especialidade de cirurgia geral, para analisar o problema e desencadeou o processo no Conselho Disciplinar da secção regional do Sul. O que pretendo é apurar, com celeridade, a verdade dos factos, para a Ordem dos Médicos poder agir em consequência. Acho que aqui, o Ministério da Saúde também tem de saber agir, tal como o Conselho de Administração do hospital, se houver, obviamente, fundamentos para isso.
Ouça a entrevista completa este domingo ao meio-dia na TSF