Narcóticos Anónimos: "Dizer tudo o que vai na alma" para recuperar do consumo de droga
As reuniões dos Narcóticos Anónimos existem há 40 anos em Portugal. Mais de 100 reuniões diárias são realizadas em todo o país.
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Diana (nome fictício) só se "sentia bem na escuridão". Após ter participado em duas reuniões de Narcóticos Anónimos (NA), considerou que aquele não era o sítio para si. "Naquela altura estar ali não me dizia nada. Até porque estava a consumir uma droga socialmente aceite", afirma. Começou a consumir aos 18 anos, passou por uma instituição de saúde e foi aí que viu um panfleto dos NA. Deu-o ao ex-companheiro e incentivou-o a participar nas reuniões, das quais ela própria tinha desistido. Em 2017, viu-se novamente "nas malhas da droga". Hoje está em recuperação há cinco anos.
Os Narcóticos Anónimos, associação de utilidade pública, está a celebrar 40 anos de existência em Portugal. Atualmente decorrem mais de 100 reuniões diárias, com grupos espalhados por todo o país. Vão reunir-se a partir desta sexta-feira e até domingo em Portimão, no Algarve, na 31.ª Convenção Nacional de Narcóticos Anónimos. "Não estamos interessados em saber que drogas usavam e quais as quantidades. Queremos saber apenas o que podemos fazer acerca da recuperação", conta Ana (nome fictício).
Em NA, não há elementos externos a participar nas reuniões: todos são adictos em recuperação. Em cada grupo, há membros eleitos para prestar serviço em regime de voluntariado, seja na organização das reuniões ou no contacto com outras entidades, como os hospitais. Também Ana está em recuperação. Já lá vão 30 anos. "A substância mais penosa que consumi foi a heroína", diz.
No dia em que o JN visitou uma reunião de NA, numa cidade do Grande Porto, Miguel (nome fictício) e Diana preparavam apressadamente todos os elementos do encontro, desde os panfletos informativos à máquina do café e do chá para aquecer as vozes e o corpo numa noite fria de primavera. "Eu achava que a minha história era diferente de toda a gente e que não ia conseguir recuperar", conta Miguel.
O modelo de funcionamento nas reuniões dos Narcóticos Anónimos inclui várias fases. Primeiro, o adicto tem de ter o desejo de deixar de consumir droga, sejam elas estupefacientes ou álcool. Depois, vai escutar e identificar-se com as partilhas feitas por outras pessoas, também elas em recuperação.
O embate de uma primeira reunião não é fácil. Diana lembra-se de ter um "semblante carregado", de não conseguir olhar ninguém nos olhos e de estranhar que todos estivessem a sorrir. Miguel ficou à porta e só quando viu "dois amigos do tempo do consumo" é que percebeu que estava perante "algo diferente", suficientemente capaz de o ajudar.
Não são dados conselhos
"As pessoas nas reuniões podem dizer tudo aquilo que quiserem, o que lhes vai na alma e no pensamento. Quando estão em recuperação há pouco tempo falam mais sobre a dificuldade de se manterem sóbrios, limpos e da organização da vida. Quando estão há mais tempo em recuperação falam da família, das relações e do trabalho", explica Ana. Não existe feedback, isto é, ninguém dá conselhos ou comenta a partilha de outro adicto.
Os NA também não referenciam nenhuma pessoa para um tratamento no exterior. "Mantemos contactos com outros programas de recuperação, como instituições do Estado, mas no sentido de nos mostrarmos como um recurso para a sociedade", revela Ana. Não são raras as vezes em que clínicas usam "o programa de NA como base" e direcionam os utentes, mais tarde, para a reunião da associação, cujo primeiro encontro em Portugal foi em 1985.
As reuniões de Narcóticos Anónimos têm sido um reflexo da sociedade: há mais jovens a frequentar os encontros, nota-se a proliferação das drogas sintéticas e também a adicção ao jogo online e às redes sociais. Há 26 anos em recuperação, Miguel nota haver uma "grande diversidade de drogas" nos adictos em recuperação, mas realça que a "obsessão, a compulsão e a destruição emocional é comum" em todas as substâncias.
O relatório mais recente do Instituto para os Comportamentos Aditivos e as Dependências (ICAD) mostra 24 246 pessoas com problemas relacionados com o uso de drogas estiveram em tratamento no ambulatório da rede pública especializada em 2023. Trata-se de um ligeiro aumento de 0,3%, depois das descidas verificadas entre 2017 e 2020. O número de utentes internados em unidades de desabituação subiu 19% face a 2022.
Os dados do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses revela que dos 387 óbitos registados em 2023, em que se detetou a presença de substâncias ilícitas, 80% foram causadas por overdoses.
Diana admite que há dias menos bons no caminho da recuperação de uma adicção. "Não há uma receita. Não podemos dizer: 'juntas 100 gramas, 100 gramas daquilo'. É ir às reuniões e aprender com a experiência dos outros e também partilhar a nossa história", conclui.

