Pagamentos eletrónicos tiveram o melhor ano de sempre e, em vez de quebras, o retalho tem lucro na Internet.
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Os pregões típicos das vendedoras de fruta do Mercado do Bolhão já tinham perdido entusiasmo há dois anos e meio, quando foram forçadas a mudar-se, temporariamente, para o centro comercial La Vie Baixa, no Porto. Os turistas diminuíram, desiludidos por não visitarem o mercado centenário, mas o negócio ia resistindo com os clientes fiéis dos sábados.
"Depois do confinamento, a maioria deixou de vir", lamenta Susana Barros, sobrinha da "Ermelinda da fruta". O pregão ouve-se hoje noutro sítio: o Facebook. "Estava longe de me imaginar a fazer diretos, mas é assim, são as vendas online que nos aguentam a banca este ano", resume a vendedora. Tinham terminal multibanco no mercado, mas para receber dos clientes online tiveram de encontrar novas soluções e o MB Way foi quase imposto pelos clientes. "É uma maravilha! O dinheiro está aí e, logo a seguir, está aqui", comenta, mostrando o "smartphone" que, hoje em dia, é ferramenta de trabalho.
Melhor em 46 anos
Não é caso único: entre março e novembro, de acordo com a Informa D&B, o número de empresas com atividade principal no retalho online praticamente duplicou face ao mesmo período do ano passado (+84%) e aquelas que acrescentaram as vendas remotas ao negócio principal também cresceram 8%. É a única atividade com mais nascimentos em 2020 do que no ano passado. "O volume de faturação via e-commerce da Reduniq cresceu exponencialmente, comparado com 2019: 91% em novembro de 2020", revelou Tiago Oom, diretor da empresa que possui cerca de 200 mil terminais de pagamento no país.
Este foi, também, "o melhor dos últimos 46 anos, desde que começou a rede em Portugal", com a instalação de mais 10 mil novos terminais de pagamento, especialmente no comércio tradicional. "A pandemia acelerou a desmaterialização do dinheiro. Os clientes não querem pagar com dinheiro e o comerciante também não quer tocar-lhe", resumiu.
Dinheiro digital
Os pagamentos "contacless" aumentaram mais de 300% em alguns momentos, quando ainda há pouco tempo se desconfiava dos pagamentos sem código. "A necessidade levou as pessoas a entrar no online, a aprender a confiar no que desconheciam. Não penso que voltem atrás. Vão continuar a usar", acredita Gabriel Coimbra, diretor-geral da IDC Portugal.
O imprevisível trazido pela pandemia que arrasou o turismo e deitou por terra os investimentos e poupanças do casal Borralho, em Sintra, foi o motor de algo mais sustentável. A entrega ao domicílio de cabazes de hortícolas biológicos, produzidos no quintal de casa e dos amigos, fará nascer uma rede de hortas por todo o país. O financiamento foi obtido online, a rede será construída na internet e os produtos chegarão a mais clientes, confinados ou não.
"Booking" das hortas vai nascer graças à covid-19
A Internet já estava na vida de Rui e Marília Borralho desde que os primeiros sites em português começavam a conquistar audiências. Naturlink era o site ambiental, nascido em 2000, com mais tráfego na Europa. A crise de 2012 baixou o rendimento, gerado pela empresa de comunicação ambiental que era dona do site, e o casal pensou que o futuro passaria pelo turismo. Em 2018, avançaram com o NaturSintra, um projeto de turismo sustentável que mal chegou a ter três casas, todas reservadas este ano, quando a pandemia cancelou tudo.
"A Marília também perdeu o emprego. De repente, não tínhamos sustento", recorda Rui, 57 anos. Engenheiro florestal, doutorado em Ecologia e Gestão Faunística, já há muitos anos que, com Marília, da área veterinária, fazia hortas no quintal de casa. A necessidade, gerada pela pandemia, deu azo à ideia de aproveitar os quintais dos vizinhos e dos amigos para produzir hortícolas biológicas premium (sem qualquer produto químico), que seriam comercializados graças aos mais de 100 mil contactos de newsletter do Naturlink e distribuídos pelo casal no distrito de Lisboa.
"Criámos um crowdfunding para angariar quatro mil euros. Acabámos por conseguir mais de cinco mil em cerca de um mês. Quem contribuiu tem desconto vitalício na compra dos Naturcabazes", explica o empreendedor.
Rede de hortas
A natureza foi particularmente generosa, uma vez que as hortícolas de verão começaram a nascer logo em junho. E a não chegar para as encomendas.
"Vendemos tudo o que produzimos. Por isso, estamos focados em aumentar a produção", assegura Borralho. Tem clientes fixos desde o início da pandemia, que visita numa das duas saídas semanais de distribuição.
Além dos campos dos amigos e conhecidos, os empreendedores começaram a ser abordados por proprietários de todo o país, bem como por pessoas interessadas em trabalhar as hortas para alimentar cabazes. O próximo passo da empresa é "criar uma espécie de booking das NaturHortas, onde quem quer trabalhar encontra terrenos e onde os proprietários anunciam os mesmos. Os proprietários cedem terreno e água e recebem 30% da produção e o técnico que trabalha a terra terá toda a produção comprada por nós ao valor praticado nos supermercados ao consumidor final, o que é muito vantajoso, uma vez que a empresa assegura outros fatores de produção, como as sementes", resumiu. Esta rede, que deverá nascer em breve, atraiu já o interesse de investidores estrangeiros, técnicos locais e proprietários de mais de 70 terrenos "de Viana do Castelo até Tavira".
A trabalhar os terrenos (dez hortas na região de Sintra), a coordenar as vendas e a fazer a distribuição, em média, de dez cabazes por dia, o casal Borralho já precisa da ajuda da jovem filha Ana, nos tempos livres da universidade, e pondera contratar "muito em breve".
Net compensa falta de clientes no Bolhão
O primeiro anúncio do confinamento geral, em março, criou um problema à banca das "Frutas Ermelinda e Gertrudes", no Mercado do Bolhão, no Porto. As compras da semana estavam feitas, o mercado estava a funcionar, mas os clientes fecharam-se em casa e não apareciam. Decorridos nove meses, a "Fruta da D. Ermelinda" cresce no Facebook, tem milhares de seguidores nos diretos em que apresenta a fruta e cerca de meia centena de clientes novos por semana.
"Tivemos de nos voltar para as entregas ao domicílio", recorda Susana Barros, sobrinha da Ermelinda, que dá o nome à banca há cerca de quatro décadas e onde trabalham vários elementos da família. As redes sociais foram determinantes para chegar aos clientes. Em pouco tempo, "o telefone não parava" e as entregas feitas pela Sara, filha da Ermelinda, também não.
"Chegámos a fazer 25 entregas por dia, todos os dias, ao ponto de decidirmos comprar uma carrinha para levar a fruta", explica Susana. A "Fruta da D. Ermelinda" é, agora, uma banca no Facebook, com diretos que apresentam as últimas novidades.
Clientes fidelizados
Os clientes não são os mesmos que já conheciam a família da fruta no Bolhão, mas são servidos com o mesmo jeito carinhoso que só o comércio tradicional domina. "Já sei quantas peças de fruta querem, se é mais verde ou mais madura. Fazemos por agradar e as pessoas retribuem nas redes sociais", explica Susana.
Por semana, a "D. Ermelinda" tem agora cerca de 50 fregueses que não tinha antes da pandemia. "Alguns já vieram ao mercado conhecer-nos, depois de nos comprarem online, mas nunca tinham cá vindo antes disto tudo. Quase não há gente no Bolhão, se não fosse as vendas online não dava para aguentar a banca este ano", confessa Susana. Era o turismo que visitava o Bolhão e que permitia vender fruta a restaurantes, que compunha a maioria do negócio da "D. Ermelinda".