Negócios que são do tempo da ditadura resistem agora às restrições em pandemia
A poucos dias da Revolução dos Cravos, Fernando Sampaio tornou-se sócio da loja de ferragens que remonta ao tempo da ditadura. Mantém-se com orgulho como proprietário, procurando resistir à pandemia, que tem provocado um rombo nas receitas.
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Quando se comemora hoje o 47.º aniversário do 25 de Abril, vários comerciantes recordam como os negócios nasceram no regime salazarista e falam das restrições à liberdade devido à covid-19. Queixam-se do prejuízo, mas concordam que as medidas são inevitáveis.
No centro do Porto, a casa Serafim & Sampaio abriu há 59 anos. Fernando Sampaio, de 78 anos, lembra que antes da revolução o negócio "era mau", mas "depois do 25 de Abril havia dinheiro para comprar tudo". Quase meio século depois, com uma ameaça sanitária sem paralelo, a situação "é péssima" e falta a clientela. "Fui vendendo alguma coisa", disse, contando que perdeu dois terços da receita. Esteve fechado dois meses.
Pior foi ultramar
A loja, que também vende cutelaria e materiais para construção civil, chegou a ter quatro empregados . Hoje, tem apenas um.
"Felizmente houve a revolução", comentou Ricardo Silva, de 69 anos, enquanto atendia um cliente. Recordou o nível de vida mais baixo e a falta de liberdade de expressão. Mas "a maior dificuldade" em ditadura "foi ir para África" devido à guerra colonial.
Também o restaurante "O Buraco" perdeu receita na ordem dos 70%. Em pandemia, esteve fechado seis meses e, agora que a restauração pode reabrir, os donos esperam recuperar também com ajuda do "takeaway".
Manuel Azevedo, de 73 anos, foi empregado do restaurante desde 1971, quando voltou de Ultramar. Era cabo cozinheiro da Força Aérea em Moçambique. Viu um anúncio a pedir empregados de mesa para um novo café e snack-bar. Em 1977, tomou conta do negócio com o sócio Francisco Moreira, de 75 anos, com quem trabalhou desde os 13.
Questionado sobre o que sofreu com o regime salazarista, Manuel Azevedo também não hesita: "Foi ir para o Ultramar". Antes, trabalhava com o sócio noutro restaurante mas perderam aquele emprego. O sócio esteve em Angola.
"Se éramos controlados, não sabíamos", comentou no restaurante. Mas "a revolução mudou tudo", dando ao povo liberdade de expressão. E recorda as inúmeras garrafas de champanhe servidas no 25 de Abril. Passados 47 anos, perante as restrições em pandemia, nota que "são para o bem das pessoas e da saúde de todos". E os clientes estão "lentamente" a regressar.
mudar horários
No concelho de Gondomar, a Drogaria da Várzea tem mais de 80 anos. Hernâni Torres Fernandes vivia ali com a família no rés-do-chão. Eram quatro rapazes e uma rapariga. "Nasci a vender pregos e hei de morrer a vender pregos", disse, ao JN, o proprietário.
Com 75 anos, contou que "vende-se menos porque o povo está teso". E "os particulares não têm dinheiro para pintar um quarto", exemplificou. Porém, Hernâni Torres Fernandes crê que as medidas "que o Governo tomou por causa da pandemia são corretas". Mas deixa uma crítica aos horários: "Cafés e restaurantes deviam fechar às 15 horas ao fim de semana". E devem "acabar os subsídios por estarem encerrados".
mudar constituição
Sobre as restrições em pandemia, o sociólogo e cientista político José Manuel Leite Viegas nota que "não são aplicadas de forma arbitrária, mas ao abrigo da Constituição, que contempla situações de exceção". E "não são comparáveis a qualquer restrição à liberdade permanente", como "em situações ditatoriais". Porém, "talvez se tenha de explicitar melhor estas situações de exceção na Constituição", que "devia ser alterada para contemplar estes casos de pandemia".
Regista "excessos na atuação das polícias, com cobertura das câmaras". E defende que, "em vez de se usar o medo, se use a pedagogia", considerando que o esclarecimento das restrições à liberdade "não foi suficiente" por parte do Governo.
"Renovar estados de emergência é banalizar exceção"
Uma vez que Marcelo Rebelo de Sousa deseja que o estado de emergência termine, o JN questionou o sociólogo político José Manuel Leite Viegas sobre alternativas legais. A propósito, afirma que, "se continuar a ser renovado, será a banalização de algo que está na Constituição como exceção". E "não faz sentido falar nessa renovação com os dados que temos hoje". Admite que seja necessário enquadrar os confinamentos locais, com recurso à lei da Proteção Civil.
Programas para o 25 de Abril
Porto - No Porto, o 25 de Abril volta à rua, com o habitual "Desfile da Liberdade", que sai pelas 14.30 horas das instalações antigas da PIDE e ruma até à Avenida dos Aliados.
Coimbra - Em Coimbra, há uma concentração, às 15 horas, na Praça da Canção.
Faro - Em Faro, haverá um ato público, pelas 15 horas, no Largo de S. Pedro, com intervenções das organizações organizadoras e a atuação Grupo de Jograis Acanto-TC.
Évora - Já em Évora, regressam as "Vozes de Abril", organizadas pelas juntas de freguesia com o apoio da Câmara. Compreendem 70 miniconcertos de 10 minutos, envolvendo 20 músicos, entre os quais os grupos corais da cidade e bandas filarmónicas, que tocarão a "Grândola" e dois temas à escolha. Hoje, realiza-se o concerto em honra de Nossa Senhora de Machede.
Beja - Em Beja, vai ocorrer uma marcha pela cidade, que parte às 14.30 horas do Cineteatro Pax Julia, em direção ao Jardim do Bacalhau.
Distrito de Aveiro - Estão agendadas iniciativas em quatro concelhos (Aveiro, Ovar, Santa Maria da Feira e São João da Madeira), com momentos culturais e intervenções de rua.