No início, ao primeiro impacto, mobiliza-se o grosso da coluna, a disciplina biomédica e biotecnológica. Virologistas, biólogos, epidemiologistas. Avança outra infantaria, a dos enfermeiros.
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Depois, verifica-se que uma pandemia é muito mais do que uma crise sanitária e juntam-se-lhes historiadores, antropólogos, psicólogos, psiquiatras, filósofos e todo o pelotão das ciências ditas sociais e humanas, chamadas a explicar e gerir as dinâmicas da calamidade. É assim há quase um ano: um regimento científico em ordem unida, em marcha para a guerra à covid-19. "A metáfora bélica, se calhar, é bem aplicada", verifica Alexandra Lopes, diretora do Instituto de Sociologia da Universidade do Porto (ISUP).
"Há muitos anos, já alguns autores discutiam, num plano mais filosófico, também político, a importância que tem a existência de um inimigo comum para estreitar os ligames entre as pessoas, entre os diferentes setores da sociedade, entre grupos e também entre países. Se se olhar para a História, verifica-se que está recheada de momentos de grande consolidação e integração social, precisamente perante uma ameaça, um inimigo comum, que torna mais fácil a junção de esforços, mesmo até entre aqueles que noutras ocasiões estariam de costas voltadas", afirma a professora Alexandra Lopes.
Nova ordem?
"Em certa medida - acrescenta a diretora do ISUP -, a pandemia tem essa característica. Fomos todos apanhados de surpresa, ficamos todos razoavelmente aterrorizados com o vírus, no sentido de que existe um inimigo comum que constitui uma ameaça à humanidade. Há muitos anos que Hollywood faz filmes que radicam nesse princípio. Portanto, há aqui alguns contornos da covid-19 que nos confrontam com essa metáfora bélica. Num primeiro momento, não fará muito sentido mobilizar os generais clássicos, mas os generais, nesta pandemia, foram os cientistas", acrescenta Alexandra Lopes.
Nesta batalha nada convencional, contra "um inimigo tão pequenino e microscópico", a diretora do ISUP observa a prevalência dos cientistas, a quem a pandemia guindou a um certo balcão de notoriedade, através dos conselhos de sábios que colaboram com os governos por essa Europa fora e que por cá encontram alguma equivalência nas designadas reuniões do Infarmed. Antecâmara de uma nova ordem dirigente?
"A questão é antiga: até que ponto a governação é sensível ou está disponível para ouvir a ciência? Há países que, tradicionalmente, se ancoram muito na produção de conhecimento científico - às vezes de uma forma não ingénua, até usando o conhecimento científico para legitimar posições políticas -, mas têm uma ampla tradição de procurar conhecer as realidades antes de intervir sobre elas. Temos outros país, como Portugal, que não mantêm essa tradição. Provavelmente, por razões históricas. Talvez seja uma coisa boa da pandemia: de repente, haver mais abertura da classe política e também da ciência e dos cientistas. Ambas as partes têm de aprender a melhorar o diálogo", responde Alexandra Lopes.
Evidência empírica
E mesmo que os governos procurem mais respaldo político do que argumentação científica, a diretora do ISUP só vê benefícios na relação. "Eu não seria tão negativa. Mas parece evidente que há a procura de alguma legitimação das decisões na dita verdade científica. Os cientistas têm noção disso. Mas não há nada melhor do que decisões informadas e não com base em ideias preconcebidas, sem evidência empírica que as sustente e com base em raciocínios que têm mais a ver com questões de natureza política, muitas vezes de senso comum, mais ou menos sofisticado, mas, ainda assim, de senso comum. O conhecimento científico não obriga a que se decida num sentido ou no outro, mas temos visto, na gestão da pandemia, que a decisão é política. Pelo menos, é uma decisão informada, com bases sólidas para equacionar cenários e escolher", conclui Alexandra Lopes.