As mais antigas festividades de estudantes do Ensino Secundário do país decorrem até este sábado, em Guimarães. Faça frio ou faça chuva, são milhares que saem à rua, incorporando uma mística difícil de descrever, ligada à fervorosa paixão que os vimaranenses têm pela sua Cidade Berço. Por isso, não deixam morrer a tradição.
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O desafio às baixas temperaturas é constante, mas ninguém, entre as dezenas de milhares de almas, arreda pé quando se trata das Festas Nicolinas de Guimarães, que estão na rua até ao próximo sábado. São mais de 100 mil participantes em nove eventos, alguns ao raiar do dia, outros a meio da madrugada. Mantêm viva uma devoção a São Nicolau com 374 anos que passa por gerações sem manual que a ensine.
As Festas Nicolinas são dos atuais e de todos os antigos estudantes das escolas secundárias de Guimarães. Muitos forasteiros já terão ouvido falar delas por causa do cortejo do Pinheiro, o maior e mais participado número das festas, o primeiro do programa oficial. Mas as Nicolinas são muito mais do que isso enquanto movimento cultural, social e económico da Cidade Berço.
Rojões e papas de sarrabulho
Na noite do Pinheiro, todos os restaurantes da cidade estão apinhados de nicolinos. O menu não aceita mexidas (rojões com papas de sarrabulho) e o preço médio de 25 euros é fixado antes do repasto. As oficinas dedicadas a caixas e bombos, que são pelo menos três a trabalhar nisto há décadas, vendem centenas de caixas a um preço médio de 125 euros.
É, contudo, no fenómeno social que está o encanto das Nicolinas. Para um velho nicolino, a época é uma mistura de sentimentos que vão desde o reviver das tradições dos tempos de estudante, ao exacerbar da paixão pela cidade e suas tradições, ao mesmo tempo que é altura de reencontros, alguma folia e sentimento de pertença de um conjunto de rituais herdados pelos antepassados.
Alguns são bem curiosos. Nas Novenas, por exemplo, os estudantes assistem a nove missas, uma por dia, às primeiras horas do dia. No fim, recolhem alimentos para dar na casa dos pobres. Nas maçãzinhas, à tarde, as jovens solteiras enchem as varandas do Centro Histórico e cabe aos estudantes galantearem as meninas, presenteando-as com maçãs.
No Pregão, também à tarde, o nicolino grita um texto satírico sobre a realidade atual da cidade e dos seus mandantes, na varanda da Câmara. Há ainda um baile, um magusto, as danças de São Nicolau e as roubalheiras. Estas acontecem em dia surpresa e são perpetradas a coberto da noite, mas todos os pertences "roubados" são deixados no Largo do Toural.
O "Patriotismo de Cidade" e o Vitória
O que leva, então, dezenas de milhares de pessoas a participarem, no presente, em rituais tão típicos do passado? Com as Nicolinas explica-se parte da paixão dos vimaranenses pelas coisas da cidade: O amor ao Vitória Sport Clube, o epíteto de Cidade Berço, a história na ponta da língua para provar, e bem, que Portugal não existia se não começasse em Guimarães.
"É impossível um observador exterior não reparar rapidamente na reivindicação frequente, nos discursos locais, desta viva consciência memorial e histórica", escreve o sociólogo Jean-Yves Durand, sobre as Nicolinas. A expressão mais feliz deste sentimento é, provavelmente, o "patriotismo de cidade", com que Jorge Sampaio o classificou.
Há o toque da caixa e do bombo que passa de geração em geração, que ninguém ensina e toda a gente sabe
O amor à cidade e o espírito nicolino são muitas vezes a mesma coisa. Herda-se inconscientemente ou em tertúlias mais ou menos formais, além do legado familiar. André Coelho Lima, deputado e membro da Associação de Comissões de Festas Nicolinas, exemplifica com "o toque da caixa e do bombo que passa de geração em geração, que ninguém ensina e toda a gente sabe".
Prova disso é o pequeno Francisco Castro que só tem dois anos e já é repetente nas festas. "É tradição e ele gosta muito, parece que entende", constata a mãe, Catarina Mineiro. Tem sangue vimaranense, afinal, tal como as dezenas de milhares de estudantes que por estes dias que se reencontram com a mitra na cabeça e o lenço tabaqueiro ao pescoço.
O fervor com que os vimaranenses vivem as festas ainda é diretamente proporcional ao desconhecimento que estas granjeiam no resto do país. Não são "campinos de Natal", como lhes chamou uma revista em 2016, nem tocam a "lambada" nas caixas que levam ao colo, como mostrava uma telenovela há tempos em horário nobre. São nicolinos, de Guimarães, e tocam a mais antiga tradição estudantil da região, um legado cultural único e solene. E isso, para eles, é um orgulho
