Longe vão os tempos da homogeneidade do bacalhau na ceia de consoada. A tradição ainda é o que era na maior parte dos lares portugueses, seja à maneira dos avós ou na forma gourmet, mas as alternativas vegetarianas ou vegans ganham cada vez mais lugar à mesa. Há festa, mas sem carne e sem peixe.
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Vegan: Um prato feito à Brás sem o fiel-amigo e sem ovos
Alho-francês cortado às rodelas, batata frita aos cubos, cebola, alho e sal, ligados no final por farinha de milho em água, tudo encimado por azeitonas e salsa, e eis um alho-francês à Brás - o prato principal da ceia de Natal de Carolina Massena, que vai passar com a mãe e o irmão em Vieira do Minho, terra onde nasceu. "A mãe é capaz de me acompanhar, mas o irmão vai comer bacalhau dourado".
Conhecida por Lia, a jovem de 24 anos que trabalha em Lisboa depois de se ter formado em Economia no Porto, escolheu esta refeição para a noite de consoada por ser uma das suas preferidas. E porque é que não tem nada relacionado com animais? Porque é vegan. E um vegan não come nem usa nada que tenha qualquer produto animal. Daí o prato à Brás que não leva bacalhau nem ovos e as rabanadas, os sonhos e a aletria sem os ditos e sem leite.
Faz cinco anos em janeiro que Lia se tornou vegan. Há algum tempo que queria seguir esta filosofia de vida, mas provou um prato de que não gostou muito e adiou a opção. Um dia, perguntou a um amigo como é que estava a correr o seu veganismo. "Ele falou, falou, falou tanto, que passados dois dias decidi aderir também", recorda.
A adaptação foi difícil. "Não recomendo, de todo, a passagem abrupta. Reagi um bocado mal no início. Devemos preparar bem o corpo antes de tomar uma decisão destas", aconselha. Hoje, não pode dizer que tenha saudades de comer carne e peixe, mas de "um ovinho cozido..."
Para além da comida, também não usa cosméticos, produtos de higiene, vestuário ou calçado que incluam qualquer substância de origem animal.
Vegatariano: Canelones de soja ficam bem no jantar
Quando hoje à noite José Miguel Batista se sentar à mesa da consoada, em Vila Real, não vai ter bacalhau no prato. Nem polvo. Vai comer canelones de soja. Porque é vegetariano. Ou melhor, ovolactovegetariano. Uma palavra cara que explica que, apesar de não comer carne nem peixe, a dieta admite leite, seus derivados, e ovos.
E porquê canelones de soja? "Porque é um prato de que gosto, que acho bonito e que fica bem na mesa. Pode perfeitamente ser associado à festividade, pelo menos mais que um arroz com feijão", sorri. Mas aquela é uma opção entre muitas outras", acrescenta José Miguel, que diz ser "divertido e diferente" fazer substituições de alimentos conforme as vontades, "sem ter de estar preso ao tradicionalismo".
O estudante de Psicologia deixou de comer carne e peixe em setembro de 2018, então estudante de Erasmus em Gent, na Bélgica. "Era uma coisa que desejava há algum tempo", mas como em Portugal tinha os pais a cozinhar para ele, não quis sobrecarregá-los com a necessidade de fazer sempre dois pratos.
Uma vez na Bélgica, teve de confecionar as suas próprias refeições e aí surgiu a oportunidade de não utilizar carne ou peixe. Quando não tinha tempo para cozinhar, comprava comida vegetariana. "Na Bélgica, havia muitas opções e não foi nada difícil manter o hábito". E como vivia com outros jovens, também em Erasmus, quatro deles com a mesma dieta, tal como alguns colegas de faculdade, "ainda foi mais fácil". Por cá, o que mais lhe custa é a "falta de opções" na maior parte dos restaurantes. "Já estou farto de comer omeletas", confessa.
Gourmet: Bacalhau confitado enriquecido com um carabineiro
Inevitavelmente, o chef Daniel Gomes acabará por caprichar na ceia de Natal tal como o faria se estivesse a cozinhar para umas dezenas de pessoas no Restaurante Cais da Villa, em Vila Real, onde trabalha. Não admira que a refeição da noite de hoje seja gourmet, com pratos mais ou menos complexos e requintados.
Ora, a posta de bacalhau é confitada em azeite e ainda passada pela grelha até a pele ficar estaladiça. É enriquecida com o carabineiro, que é "um marisco muito rico em sabor" e o molho feito com as cabeças deste animal que se assemelha a uma gamba. A brandade é um puré de batata trabalhado com a carne do bacalhau que está agarrada à espinha do lombo, "para não haver desperdício", e acaba por "enriquecer muito o puré". A sobremesa é "alusiva ao Natal e cheia de sabor".
Em suma, "um prato muito confortável, rico em sabor e que merece toda a consideração para este Natal, bem acompanhado por um bom vinho do Douro". A linguagem é de um chef que não poupa nos detalhes quando realça o "ponto de cura e a suculência do bacalhau", o "toque de modernidade" e, sobretudo, que "não se perca a essência dos produtos".
E se é verdade que na cozinha gourmet a refeição parece sempre um "nico" no fundo do prato, não é menos que o que perde em largura ganha em altura e em beleza, pois diz-se que os olhos também comem. Daniel, 33 anos, defende que uma refeição deve ser uma "experiência gastronómica" que "não se compadece com grandes quantidades no prato". E como um de bacalhau é, por norma, "generoso", deve evitar-se que seja "pesado" para quem o consome.
Tradicional: Uma ceia à moda antiga para menos familiares
Odete Fernandes até era mulher para experimentar uma ceia de Natal como a do chef Daniel Gomes, mas não está a ver-se a reduzir a refeição mais importante do ano a uns canelones de soja ou a um alho-francês à Brás. Com 56 anos de convivência com uma mesa natalícia onde não faltou uma farta posta de bacalhau, batatas cozidas, couves tronchas que ainda coze num pote de ferro, grelos e outros que tais, não é agora que vai inventar outra que não seja a que já os pais e avós apresentavam.
Não obstante, talvez em menor fatura por mor dos tempos de abundâncias menos permitidas. Por isso é que hoje se consente o polvo, "que na altura já era caro e hoje o é ainda mais", mas sem o qual "nem parece Natal".
Logo à noite, na sua casa em Telões, Vila Pouca de Aguiar, não faltará o polvo, mas será notada a ausência de dois filhos que estão na Suíça e que este ano "não vêm por causa da pandemia de covid-19". Serão menos dois casais e quatro netos, o que vai resumir a mesa a três pessoas: Odete, o marido e o filho mais novo.
A "tristeza" que diz sentir devido às restrições e precauções impostas pelo combate ao novo coronavírus fá-la suspirar que este ano "o Natal pouco importa". Fica a contar que no do próximo ano este problema que afeta o Mundo esteja resolvido e possibilite o reencontro tão aguardado.
Apesar de mais triste, a ceia terá tudo o que lhe pertence por tradição, mesmo que "já nem saiba ao que sabia antes", porquanto hoje em dia "come-se bacalhau amiúde, polvo um pouco menos, mas também habitual e até as rabanas já se fazem quando apetecem".