Exigência. A palavra sai-lhe repetidas vezes e molda, na sua opinião, toda a função da escola. Mais exigência nos currículos e nas avaliações, com introdução de exames ao longo da escolaridade obrigatória, contribui para reduzir a indisciplina e combate a desigualdade.
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Definindo-se como otimista, o ex-ministro e investigador Nuno Crato acredita nas virtualidades da tecnologia, desde que sem nos deslumbrarmos e perdermos de vista a importância do conhecimento.
A semana foi marcada pelo debate em torno do alegado racismo nos cartazes usados na manifestação de professores no 10 de Junho. Vê alguma agressividade ou radicalização nas posições dos professores?
Não só dos professores. Julgo que a sociedade portuguesa está um pouco mais radical. E não é só a sociedade portuguesa, é a sociedade internacional. Vemos isso nos Estados Unidos, vemos num conjunto de países.
Mas a escola não deveria ser exemplar?
Deveria, com certeza.
No Governo de Passos Coelho houve cartazes como, por exemplo, de um coelho a ser enforcado. Não tendemos à distância a esquecer-nos que este tipo de manifestações também já existiu noutros momentos políticos?
Sim, tendemos muito a esquecer-nos das coisas. Isso é muito habitual. Mas julgo que, atualmente, as coisas estão um pouco mais radicais do que estavam na altura. Assisti muitas vezes, quando estava em funções oficiais, a protestos, mas tinham uma duração mais limitada, tinham um volume mais limitado. Julgo que a situação agora está um pouco mais grave.
Tem havido alguma incapacidade política para resolver os problemas da escola?
Se olharmos para a escola numa perspetiva de longo prazo e se olharmos para a situação que se vive nas escolas, temos problemas que são de caráter sindical, de caráter laboral, de caráter económico - que se arrastam, é evidente - e temos problemas sobre a escola na sua função. O que eu julgo que se está a perder é um pouco a visão de que a escola tem a missão de ensinar. E essa missão, em certos momentos da nossa história, foi clara, a missão de que havia conhecimentos a ser transmitidos, atitudes a serem transmitidas, e que era necessário que todos progredissem, no sentido de um currículo claro, ambicioso, estruturado. E isso em geral leva a que as pessoas se concentrem na missão da escola e que os próprios alunos a respeitem. Claro que a indisciplina tem razões externas, mas quando se diz que não interessa conhecer as matérias, que o que interessa é desenvolver sentido crítico, que não importa o que se estuda, o que importa é ser-se bom cidadão, por exemplo... As duas coisas não estão em oposição. A escola faz-se para estudar, faz-se para ensinar, faz-se para saber mais.
Houve uma desvalorização dos conteúdos?
Julgo que há uma desvalorização dos conteúdos e do currículo. A escola perde e os professores perdem. E a desvalorização da avaliação, um terceiro fator que também é importante aqui. Quando não há avaliação, também surgem mais manifestações de indisciplina, manifestações de que o professor é que tem de ser bom e fazer outro tipo de avaliação. O referencial nacional de um currículo ambicioso, estruturado, e uma avaliação externa que permita mostrar a todos em que ponto estamos e o que é que temos de fazer para progredir mais, tudo isso dá um sentido à escola.
Portanto, concorda com a ideia de alguma degradação da escola pública?
Sim, acho que tem sido óbvia. E não precisamos de muita discussão sobre isso, porque se olharmos para as diversas divulgações de resultados das escolas, os chamados rankings, vemos que a escola pública tem vindo a perder posição. E se olharmos para as avaliações internacionais, entre 2003 e 2015 viemos sempre a melhorar a escola, com vários partidos e ministros de orientações diferentes no poder, às vezes com conflitos entre si, mas sempre com esta preocupação de melhorar os resultados dos alunos. E conseguimos, em 2015, chegar às avaliações internacionais, PISA e TIMMS, com os nossos melhores resultados de sempre.
Pegando nesse tema dos rankings, mais uma vez divulgados esta semana, não acha que continuamos a valorizar excessivamente as médias e os resultados?
Não. Acho, pelo contrário, que valorizamos pouco as médias e os resultados. A sociedade portuguesa, até 2001, não conhecia os resultados das escolas. O Ministério não divulgava os resultados das escolas, nem sequer as médias. E existiu um movimento, em que os jornalistas tiveram um papel muito importante, no sentido de divulgar os resultados médios das escolas. Só em 2001 é que isso aconteceu pela primeira vez e sob ameaças judiciais. Porque há um princípio democrático muito importante, traduzido na lei do acesso aos dados administrativos, que nos diz que o cidadão tem o direito de conhecer esses dados.
Qual é a utilidade dos rankings? Que consequências positivas há dessa divulgação?
Eu não estou a falar de rankings. Rankings é algo que depois as pessoas fazem, os jornalistas fazem, as universidades fazem, com todo o direito, que é uma ordenação dos resultados. O que deve ser divulgado, e isso é que é útil, é a evolução dos resultados das escolas. Quando saíram esses dados, pela primeira vez ficámos a saber que havia escolas de meios desfavorecidos que faziam um excelente trabalho e que havia escolas de meios muito favorecidos que não faziam tão bom trabalho. E começámos a dar atenção, a sociedade, e as próprias escolas foram estimuladas com essa divulgação dos resultados. Chamarmos a isso rankings acho que é uma deturpação do objetivo. O objetivo é conhecer os dados da forma mais rica possível.
A escola privada está mais preparada do que a escola pública?
Em termos muito gerais, penso que as duas estão a par. Há escolas privadas que têm muitos recursos e os utilizam muito bem, mas também há escolas privadas que têm muitos recursos e os utilizam mal. Nas últimas avaliações, há uma série de escolas privadas que estão no topo. Antigamente tínhamos muitas escolas públicas no topo e neste momento já não é bem assim, o que é mau. Essas escolas não têm tido o grau de exigência que é necessário da parte das orientações que lhes são dadas. A escola pública e a escola privada, à partida, não há uma melhor que outra.
O envelhecimento da classe docente é um dos dados mais preocupantes no setor. Como é que se olha para o futuro quando os cursos de docência continuam tão pouco atrativos?
É um problema importantíssimo e conhecido há bastante tempo. Várias coisas falharam. Uma delas é que não tenha havido a valorização necessária da profissão docente, que criasse uma atratividade para a profissão. E aí temos muitos fatores. Desde logo a valorização da função do professor, e para isso um currículo exigente e uma avaliação clara. Depois há problemas salariais, a profissão não terá a atratividade salarial que outras têm, e há problemas de preparação. Os dados das avaliações internacionais mostram até 2015 uma melhoria, e depois não tanto. E mais, com maior exigência a franja de alunos com mais dificuldades reduziu-se. É o contrário daquilo que às vezes se diz, que a exigência vai promover os melhores e não os piores. Não: essa exigência ajudou aqueles que tinham maiores dificuldades a progredir.
A expressão "casa às costas", usada até pelo Governo, marca a imagem e o dia a dia de uma larga maioria de professores. Acredita que a mudança no modelo de recrutamento traga maior estabilidade às carreiras docentes?
Não sei. Não conheço esse modelo em pormenor, não sei os pormenores da legislação. Sei que há uma discussão sobre isso, mas não conheço o modelo.
Em relação às áreas mais críticas, onde tem sido difícil atrair professores, como Lisboa e Algarve, é defensor da criação de incentivos?
É uma possibilidade. Também é um assunto que não tenho estudado, não queria pronunciar-me sobre ele.
E em relação à mudança nas habilitações, que permitiu, por exemplo, melhorar o recrutamento em disciplinas como Informática, faz-lhe sentido?
Faz-me sentido duas coisas. Faz-me sentido que uma pessoa que saiba de uma determinada matéria, seja informática, seja física, seja química, seja história, seja literatura, porque é um engenheiro informático ou porque se licenciou em literatura, pelo que seja, uma pessoa que domina uma matéria possa dar uma ajuda à escola. Claro que essa pessoa deve ter uma formação pedagógica que a habilite a ser um bom professor. E vamos ao meu segundo ponto. Esta formação complementar deveria ser muito modernizada porque, infelizmente, a nossa formação de professores está muito virada para questões muito gerais de pedagogia, de filosofia da educação, de sociologia da educação, e tem pouco aquilo que hoje de novo se sabe sobre educação. Nós estamos numa revolução sobre os conhecimentos da educação. Na Iniciativa Educação, difundimos todas as semanas artigos sobre nova investigação em áreas científicas que têm importância para a educação, nomeadamente psicologia cognitiva, estatísticas de educação, neurociências. Todas essas áreas estão a dar grandes contributos para a educação e as nossas escolas devem modernizar-se nesse aspeto. Nós hoje sabemos muito mais sobre como funciona o nosso cérebro do que sabíamos há 50 anos. E isso ajudou-nos a conhecer muito melhor como é que a educação funciona.
Os indicadores mostram que a desigualdade social continua a ser determinante na escola. Têm faltado recursos, como psicólogos, técnicos e mais tutorias?
Para os alunos que em certo momento têm dificuldades, as tutorias são fundamentais. Mas deveria haver mais tutorias focadas no conhecimento. Porquê? A tutoria que vai ser feita no sentido de desenvolver emotivamente o aluno, que é uma tutoria psicológica, motivacional, sociomotivacional, etc., tem o seu papel. Mas o apoio específico à aprendizagem tem mais papel do que esse. O apoio que inclui a melhoria da aprendizagem tem um efeito cerca de quatro vezes superior ao apoio apenas motivacional. Nós queremos motivar os jovens, mas motivar para quê? Para saberem mais. Então, a questão fundamental é ajudá-los a saber mais. Nós podemos estar à volta de um jovem e dizer "tu sabes ler, tu não és mais estúpido que os outros, tu podes perfeitamente ler", mas se isso não é seguido de um ensino sistemático da leitura, esse papel é muito limitado.
Continuamos a ter turmas mistas com alunos de vários anos de escolaridade. É aceitável?
Há muitos estudos, no Mundo inteiro, e não há conclusões definitivas sobre isso. Foram muito comparadas as aprendizagens dos alunos que estavam em turmas mistas com alunos que estavam em turmas de um só ano de escolaridade e as conclusões são muito poucas. O que sou partidário é que os alunos estejam numa escola com muitos colegas. Por isso houve um movimento de criação de centros escolares em que se juntavam jovens de várias localidades e tinham acesso a uma educação de muito mais qualidade do que isolados numa escola com cinco ou seis.
Em relação ao acesso ao Ensino Superior e ao sistema de exames, concorda com o novo modelo agora proposto?
Deve haver avaliação ao longo de toda a escolaridade obrigatória. É uma questão fundamental para valorizar o esforço dos professores e para os ajudar na exigência com os alunos.
A pandemia contribuiu para algum facilitismo, na medida em que foram simplificados os sistemas de avaliação?
Podemos sempre dizer que na pandemia foram momentos excecionais e que algumas coisas teriam de ser feitas. Agora a pandemia acabou. O que precisamos é de olhar para o que queremos da escola. Acho que queremos uma escola exigente e com avaliação. A avaliação é fundamental para a exigência. Sabemos dos estudos PISA, TIMMS, etc., dos estudos internacionais que foram feitos, que quando se introduzem momentos de avaliação, ou seja, exames, os países progridem. Quando se retiram os momentos de avaliação, os países retrocedem na educação dos jovens. Estatisticamente, claro, e em certos países este efeito é muito mais pronunciado do que noutros. O testar-se a si próprio, a avaliação formativa, é algo fundamental para aprender. E as duas coisas estão em paralelo. Ou seja, se existirem exames, os professores, quando fazem a avaliação formativa dos seus alunos, têm um referencial de exigência que os ajuda a preparar esses alunos. Não é uma avaliação para ter nota, é uma avaliação para ir melhorando.
Concorda com o uso de ferramentas digitais na sala de aula?
Sou otimista. Acho que foi muito bom termos internet, é muito bom termos computadores, é muito bom termos calculadoras, é muito bom termos a Wikipedia, é muito bom termos o ChatGPT. São coisas fantásticas e instrumentos muito úteis. Agora, não nos devemos deslumbrar com esses instrumentos ao ponto de pensar que deixou de ser necessário o conhecimento. Pelo contrário, vai ser mais necessário o conhecimento, vai ser mais necessário o trabalho dos alunos, vai ser mais necessário que esse conhecimento seja profundo. O ChatGPT é algo que nas universidades pode ser preocupante, tem de se pensar o que se vai fazer. No ensino obrigatório, não vejo problema se o ensino for dirigido com objetivos curriculares claros. Se fizermos um ensino exagerado por projetos, como se defende, que eu sou totalmente contra, aí o ChatGPT é algo muito preocupante, porque estamos a dizer aos jovens "vão adquirir conhecimento disperso destas matérias, não vão trabalhar em conjunto".
Ouça a entrevista completa este domingo ao meio-dia na TSF