Entrevista com Filipa Raimundo, professora do ISCTE que investigou o modo como em Portugal se lidou com o legado e a memória do passado autoritário.
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No livro “O essencial da política portuguesa”, e concretamente no capítulo “Lidar com o passado autoritário”, explica que, com o 25 de Abril, e para além da rotura com o regime anterior, houve um ajuste de contas da democracia com a ditadura. Quer explicar melhor como é que se deu essa rotura?
Com o 25 de Abril, e a partir do momento em que o regime anterior cai e as suas principais instituições são dissolvidas, abre-se uma janela de oportunidade para um ajuste de contas. Foi muito diferente da forma como outros países fizeram a transição para a democracia. Quando é preciso negociar com a elite que está de saída, e uma vez que essa mudança não é feita de forma revolucionária, essa janela de oportunidade não se abre.
Temos esse exemplo com o processo de transição em Espanha, em contraponto com a revolução portuguesa.
É o melhor exemplo, também porque nos é muito próximo. Conhecemos as características do regime franquista, sabemos que cai em 1975, na sequência da morte do próprio Franco. A elite franquista percebe que não tem margem para continuar, mas ainda está no poder e, portanto, tem margem para negociar e sair sem que ninguém seja punido, sem ajuste de contas. Foi muito diferente do que se passou em Portugal: Marcelo Caetano rende-se, o regime cai nesse mesmo dia e a Junta de Salvação Nacional decide, de imediato, dissolver o partido único [União Nacional], a Assembleia Nacional. Dissolve tudo e criam-se novas instituições políticas provisórias, criando a tal janela de oportunidade. Ao mesmo tempo, a voz na rua é a do ajuste de contas, com a famosa caça aos pides. Há todo um movimento pró-rotura e ela, de facto, acontece.
Outro dos sinais dessa rotura é o facto de não ter havido uma sucessão política, ou um partido sucessor.
Exatamente. Estudos recentes mostram que o mais comum é as democracias que vêm depois de uma ditadura manterem o partido que governou em ditadura, ainda que num outro formato, ou que surja um partido criado por altas figuras do regime anterior no novo sistema partidário. Esse é o padrão mais comum. Portugal é uma das exceções, uma democracia que nasce sem um partido associado ao regime anterior. No espectro partidário não surge nenhum partido que tenha dificuldade em posicionar-se relativamente ao passado, que possa ser acusado de ter sido responsável pela governação autoritária. Houve tentativas de reorganização dessa direita, mas foram ilegalizados. E o que tivemos, durante muitos anos, na democracia portuguesa, foi o CDS como o partido mais à direita no Parlamento, e, portanto, sem um partido sucessor.
No período da transição espanhola, foi formada a Aliança Popular, que incluiu algumas figuras do regime anterior, entre as quais Manuel Fraga Iribarne [foi ministro de Franco]. O “herdeiro” da Aliança Popular é o Partido Popular [partido de centro-direita]. Se tivermos em conta que Francisco Sá Carneiro, o fundador do PPD/PSD, já fazia parte, entre aspas, do regime, uma vez que era deputado de uma oposição consentida [dentro do partido único], pode dizer-se que também em Portugal houve uma espécie de continuidade?
Há de facto um elemento de continuidade de quem tem experiência política, neste caso da chamada “ala liberal” na Assembleia Nacional. Mas não são pessoas que possam ser consideradas como complacentes ou envolvidas nas decisões do regime. Desse ponto de vista, e relativamente à figura que referiu, não existe a bagagem a que geralmente se alude quando se fala em partidos sucessores. Acresce que houve um decreto de lei, publicado ainda em 1974, que impediu a inclusão de pessoas que tiveram uma série de cargos durante o Estado Novo nas listas de candidatos às eleições. Os partidos tiveram muito cuidado ao criar as suas listas eleitorais, nas eleições de 1975 [para a Assembleia Constituinte], mas também na forma como se apresentaram, não queriam arriscar ser acusados de proximidade ao Estado Novo.
Apesar das dificuldades iniciais que referiu, houve quase de imediato algumas tentativas de lançar partidos que poderíamos catalogar, hoje, como sendo de direita radical, ou de extrema-direita. Mas esses partidos não vingaram, sempre que se sujeitaram a eleições. Que explicação é que encontra para isso, tendo em conta que os portugueses não seriam todos revolucionários de esquerda. Como aliás ficou bem patente no chamado Verão Quente de 1975.
Bom, alguns deles foram imediatamente ilegalizados. Portanto, não tiveram essa oportunidade. Para além disso, sabemos que essas tentativas iniciais de reconstituição de uma certa direita foram promovidas por figuras menores do regime, pessoas sem o capital necessário para tornar um partido minimamente viável. Essas soluções não vingaram. E ofertas partidárias mais extremistas à direita, como o PNR [Partido Nacional Renovador, criado no ano 2000], não tiveram adesão suficiente para crescer. Apesar de continuarem presentes ideias mais salazaristas, mais nostálgicas, não é o suficiente para alimentar um partido dessa natureza.
É uma evidência que ninguém foi capaz de representar essa nostalgia no Parlamento. Mas essa nostalgia relativamente ao regime anterior permanece, ou é já uma memória demasiado remota?
Em Portugal, temos poucos dados de opinião pública. E, portanto, temos muita dificuldade em conseguir perceber quais são as atitudes prevalentes. Com os poucos dados a que vamos tendo acesso, o que vamos sabendo é que as atitudes nostálgicas, as atitudes positivas em relação ao Estado Novo não diferem muito das que existem nas democracias pós-autoritárias. Independentemente de ter havido uma transição ou uma rotura, encontramos sempre 15% a 20% da população que considera que o regime anterior teve mais coisas positivas que negativas. Verifica-se em Portugal, como em outros países. O que pode diferir é se esses inquiridos têm uma simpatia por um determinado partido, ou como se posicionam ideologicamente. Isso varia de democracia para democracia. Em Portugal, nunca tivemos um partido político que incorporasse essas ideias no Parlamento, nunca tivemos um partido sucessor. O partido mais à direita, durante a maior pate do tempo da democracia portuguesa, foi o CDS, que nunca expressou atitudes positivas relativamente ao Estado Novo.
A atual direita radical, e concretamente o Chega, demonstra algum interesse por essa nostalgia?
Até há muito pouco tempo, a resposta seria não. O partido, no geral, nunca tentou ir por aí. Em particular o líder [André Ventura], que é quem, no essencial, toma decisões. A estratégia de crescimento do Chega foi a de aceitar todas as forças políticas que quisessem juntar-se, pessoas de várias ideologias, com valores distintos, mas que sentissem que o Chega podia ser o seu partido. O que temos lá dentro, neste momento, quer em termos de elites dirigentes, quer em termos do eleitorado, são várias tendências diferentes. Alguns colegas meus, como o Luca Manucci, têm vindo a argumentar que o Chega é agora o partido com o eleitorado mais nostálgico em relação ao regime anterior. Mas isso não significa que seja uma percentagem significativa do partido ou da sociedade portuguesa.
Vê alguma semelhança entre a chamada “maioria silenciosa” que o general António de Spínola e os seus apoiantes mais próximos procuraram mobilizar em 1975, e os “portugueses de bem” a que agora alude André Ventura. Há algum ponto de contacto?
Os tempos são muito diferentes. É verdade que há uma predominância de eleitorado que tem atitudes nostálgicas no Chega, mas, relativamente a outros valores, não há diferenças muito significativas face a outros partidos. Ainda está por perceber exatamente o que é este movimento, mas diria que congrega muitas dinâmicas diferentes. O meu colega Vicente Valentim [autor do livro “O fim da vergonha: como a direita radical se normalizou”], por exemplo, justifica, em parte, o crescimento do Chega com o facto de ter passado a ser mais aceitável dizer certas coisas, que antes se considerava “conversa de taxista”. Mas é um pouco forçado dizer que o Chega está a crescer porque, afinal, a população portuguesa acha que o Estado Novo foi muito bom e é a favor de atitudes mais autoritárias. Não há um milhão de pessoas que pensam exatamente da mesma maneira, nem estão lá pelas mesmas razões. Tem havido consenso sobre a ideia que o Estado Novo foi mau, que o 25 de Abril foi um momento muito importante da democracia portuguesa, que o que ficou para trás não é para repetir e que a democracia é boa. Onde há divisão, quer na elite política, quer na sociedade, é em relação ao período de transição que se seguiu ao 25 de Abril. Esse é que tem sido sempre o tema mais controverso.