Vai-se deixando o Creoula aos poucos, enquanto ele se faz de novo ao mar a partir da Base Naval do Alfeite, em Lisboa, onde desembarcamos ao fim de quase 234 horas de navegação, com os corações mais ou menos apertados. Pelas saudades dos que deixamos em terra e pelas despedidas que ali começavam.
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Agora, o chão já não oscila sob os pés, e aos poucos deixamos de despertar com a sensação instantânea de ainda estarmos deitados nas camaratas, embalados pelo constante balançar do veleiro da Marinha onde seguiu mais uma viagem da Universidade Itinerante do Mar (UIM) - parceria entre as universidades do Porto e Oviedo e Escola Naval que organiza cursos de mar -, esta acompanhada pelo JN.
Também já não ouvimos o ronco do motor do antigo bacalhoeiro, que insistiu em vir para casa connosco, a zumbir nos ouvidos, nem adormecemos ao som das vagas a quebrarem no casco do navio, mesmo ao lado do beliche. Tão pouco tomamos banho aos baldões, a embater, enquanto a embarcação adornava, nas paredes dos chuveiros de casas de banho exíguas para tanta gente - embarcaram 50 pela UIM - e demasiado longe do conforto a que a maioria estará habituada. Ah, e já não acordamos pelas 7 da matina ao apito de um arrastado "Creoula, guarnição e instruendos: alvorada, alvorada" a ecoar no ETO, o equipamento de transmissão de ordens do navio.
Golfinhos, baleias e tartarugas
Tudo isso ficou para trás, é certo, mas cada um levou o Creoula consigo para onde quer que tenha ido e independentemente do rumo que deu à vida. E levou a magia das estrelas cadentes, do pôr-do-sol no meio do Atlântico, em nenhures, e das amizades para sempre que nasceram ali, em pouco mais do que nada. Levou a memória da branquíssima espuma das ondas no meio de uma noite escura como breu ou a imagem das primeiras aves que vêm dizer que nos aproximamos de terra. Ou a dos golfinhos, baleias e tartarugas que vimos.
Ou levou a voz doce de Patrícia enquanto buscava na guitarra os primeiros acordes, ainda imaturos, de "Yellow", dos Coldplay - e bastava ela dizer-nos para olharmos para as estrelas e vermos como elas brilham ("Look at the stars/Look how they shine for you", cantava) para encher-nos a alma. E houve as gargalhadas contagiantes de Inês, as piadas irresistíveis de Rubim, o vozeirão sonante de Salazar - este, José António de baptismo, um mestrando de 63 anos que também se apresenta como mergulhador e ilusionista -, as brincadeiras de Zein ou a boa-disposição dos militares... E a sensação indizível de avistar terra a partir do mar: a ilha da Berlenga primeiro, Porto Santo depois, a seguir o Funchal e, por fim, foi ver Lisboa recortada ao longe e chamá-la de casa.
Demasiadas palestras
"Conhecer a Madeira de barco" foi um dos sonhos que Ezequiel Hortelano, um espanhol de Múrcia, de 25 anos, a estudar no Porto, cumpriu. "É muito impressionante ver terra desde o mar; é uma sensação de descobrimento", diz, ao JN, enquanto faz um balanço "positivo" da aventura, à excepção das sucessivas conferências a meio navio que foram esgotando o pouco tempo livre que restava aos participantes, por entre as tarefas exigidas pelo veleiro e que começavam logo às 8.30 horas, com a faina de limpezas, e que ao longo do dia podiam passar pela de mastros, à força de braços a puxar em conjunto - ambas feitas por esta gente brava (a maioria com pouco mais do que 20 anos e alguns com mais de 60), que em tempo de férias se habituou à vida de "quartos" do navio (trabalho por turnos de quatro horas).
"Foi um exagero de palestras. Há muito pouco descanso, e as pessoas chegam a um ponto em que estão exaustas, cansadas até delas próprias", considera Rubim Almeida, que destaca, contudo, "as fantásticas relações interpessoais" que ali se criam. Tal como este professor universitário de 55 anos que embarcou como instruendo, também Filipe Cayolla, mais novo cinco anos, realça a "experiência muito positiva". Repetente no Creoula pelo segundo ano consecutivo, diz ter sentido falta de mais formação a nível de navegação. "Se viemos navegar, a coisa mais básica é compreender como se faz isso, e quase ninguém percebeu", aponta, salientando como exemplo positivo o workshop orientado pelo mestre do navio sobre os nós usados na marinha.
"A formação teórica é muito fraca e desiludiu-me. Quando embarquei, não sabia as temáticas das palestras, e senti que muitas eram improvisadas e que não fizeram o mínimo sentido", nota Ezequiel Hortelano. Por outro lado, Cayolla diz que "não se pode exigir atenção a pessoas que não dormiram o suficiente e que não estão com capacidade" para assistir a aulas. "A disciplina e o espírito marcial seriam benéficos nas doses certas. Mas, neste caso, acho que as coisas estão um pouco desequilibradas", acrescenta.
"Testar limites"
Ao "excesso" criticado pela maioria dos participantes, a organização da UIM - projecto que nasceu sob o lema "Conhecimento e aventura" - contrapõe com a necessidade de colocar os instruendos perante exigências que crê idênticas às da vida quotidiana. Sob stress, cansaço, pressão... Um "testar limites" que acaba por resultar numa espécie de versão híbrida da vida militar. Porque, ali, ninguém consegue testar limites verdadeiramente, a não ser pôr em prática um mero teste de resistência ao sono. É que no Creoula - onde no século passado muitos pescadores, esses sim, experimentaram condições limite - vive-se a anos-luz de replicar o treino militar. E nem os militares estão ali para isso. "O objectivo não é chamar pessoas para a Marinha", sublinha o capitão-de-fragata Cruz Martins, que comanda o veleiro há quase três anos. Além do "trabalho de equipa" e do "espírito de grupo" que leva os instruendos a compreenderem o que é a vida a bordo - onde todos precisam de todos -, eles "ficam sensibilizados para uma série de questões relacionadas com o mar e o seu potencial", explica o oficial.
UIM Júnior viaja dia 5
De resto, pode testar-se tudo a bordo do Creoula, e quase tudo acaba por emergir, mais tarde ou mais cedo - as limitações (não limites); as capacidades e incapacidades na gestão de emoções, do stress, das tarefas; as frustrações e as realizações pessoais; as empatias ou desafectos... Como se o navio fosse um enorme laboratório sociológico. Aliás, Fermín Rodríguez, um dos mentores da UIM, resume o fenómeno assim, ao JN: "O barco faz uma radiografia a todos. Aqui, ninguém pode esconder-se muito...".
Mas agora, que o chão já não balança, que as plantas que Manuel trouxe do Funchal já criam raízes no Jardim Botânico do Porto e o veleiro se prepara para a primeira viagem da UIM Júnior, no próximo dia 5 (havia outra campanha para universitários programada até Casablanca, em Marrocos, e Portimão, no Algarve, mas caiu por terra por falta de participantes), todos navegam ainda na nostalgia do que viveram durante os primeiros 15 dias deste Agosto. Porque, afinal, não é fácil soltar amarras do Creoula...