Começou tudo no medo, no desconhecimento, na aflição, mas, hoje, 10 mil doentes covid depois, 25% internados, S. João vive a pandemia confiante, cheio de serenidade.
Corpo do artigo
É um quadro quase inédito e plenamente invulgar, mas ali, Unidade de Cuidados Intensivos do piso 6 do hospital portuense de S. João, fim de fevereiro de 2021, pareceu perfeitamente que vários beija-flores voavam muito atraídos à volta de uma lágrima-de-cristo, a flor sineira branca em que as sementes saltam da carne vermelha como se fossem dois olhos a sorrir. Foi o sorriso de Joaquim que fez aquilo: acordara de 88 dias de coma no dia anterior e agora, reclinado, penteado e bem posto na sua cama da UCI, olhava encantado à esquerda e à direita, em tronco nu, apontava, mandava beijos ao ar, fazia lentos corações com os dedos das mãos. A sorrir sem parar, à volta dele, vestidas de batas verdes, uma, duas, três, chegaram a ser cinco as médicas que pairavam à roda de Joaquim em satisfação. O homem, 66 anos, internado há 90 dias, é um utente ativo em recuperação que superou a covid-19.
Emocionalmente aliviado, é um quadro muito diferente do de há exatamente um ano - não é o inverso, mantêm-se a gravidade, a atenção, a preocupação -, quando a nova doença respiratória provocada pelo coronavírus chegou a Portugal e o primeiro positivo confirmado soou no S. João. Aí, via-se o tsunami que vinha da China a crescer, a chegar e a embater com o vírus que nos deixa sem ar, havia medo, desconhecimento, muita ansiedade, aflição, desorientação.
Sérgio foi o 1.º entubado
Foi assim que se sentiu Sérgio Rocha, 45 anos, professor primário em Campo-Valongo, ansioso, preocupado, azoinado e a arder em 39 graus. Foi hoje, 2 de março, em 2020.
Daí a oito dias, esgotados os antibióticos e os "benurons", aquilo não passava, desesperava, fez raio-x, fez TAC e acusou infeção grave pulmonar. Testado positivo, internou-se com calafrios no S. João. "A partir daí precipitou-se tudo, foi tudo muito depressa. De manhã dei positivo, ao fim da tarde ia entubado, ligado ao ventilador, à noite já estava em coma induzido na UCI", diz Sérgio, o primeiro a entrar assim no quadro de covid do S. João.
"O coma foi mirabolante, durou duas semanas completas, pareceram-me meses e meses, o cérebro fica sempre ligado, anda a mil à hora sem parar, sempre em delírio, sonhos atrás de sonhos, é animalesco, é um sentimento mental muito sofredor", elucida Sérgio.
Entre a vida e a morte, três dias sem reação, uma infeção oportunista no meio, mais febre, mais alta, rins e fígado quase a falir, ele amarelo, subitamente acorda 14 dias depois e já sabe outra vez respirar. Passa aos cuidados intermédios, depois enfermaria, perdera 15 kg, recupera a mobilidade, faz reabilitação. "A 1 de abril tive alta, não foi mentira, fui para casa", diz o professor, com bom humor. "Em dois meses estava novo, exercitei-me muito em casa, tudo à risca, nem precisei de mais reabilitação no S. João". Sequelas? "Que eu saiba, não. Sinto-me bem, sem cansaços, faço vida normal, dia 23 vou à consulta anual", diz Sérgio Rocha, a sorrir com os óculos embaciados, atrás da máscara, muito sereno, sem qualquer preocupação.
Melhor que EUA e China
"Organização, capacidade de previsão, não ter medo de virar meio hospital e trabalhar, basicamente, como se estivesse no futuro, foi isso que o S. João fez", atesta Maria João Baptista, diretora clínica e da administração. É por isso que o hospital central do Porto e Norte revelou uma taxa de mortalidade de doentes críticos inferior à de muitos países. É o que diz o artigo científico da "Critical Care and Shock", publicação bimestral do grupo especialista mundial sediado na Indonésia. Entre 11 de março e 17 de agosto de 2020, o estudo seguiu 62 doentes graves com o vírus SARS-CoV-2 e sob ventilador em UCI do S. João. Com maioria de homens (62,9%) e média de idades de 71 anos, a taxa de mortalidade geral foi de 21,8% - igual à da Alemanha (22%), muito melhor do que a da China (58,3%), Itália (53,4%) ou EUA (35,4%).
"Quando isto chegou, foi quase um filme, quase irreal, as imagens pós-apocalípticas, as cidades vazias, os hospitais a encher. Março e abril foram críticos, sabia-se muito pouco sobre a covid, nesse momento, recordo-me, posso dizer que, sim, eu tive medo", continua a administradora. "Aprendemos muito nesse embate. E no verão de 2020, sabendo que vinham aí novas vagas, e que seriam maiores, e fizemos obras, comprámos equipamento, mudámos pessoas e demos formação. Foi isso que fez a diferença".
Mais vacinados que casos
Hoje, 10 mil doentes covid já passaram pelo S. João, 2500 deles estiveram internados, os restantes foram seguidos em ambulatório. O país totaliza agora 16 351 óbitos (8551 homens e 7800 mulheres - há 751 homens a mais). O Relatório de Situação #364 da DGS, de segunda-feira, aponta ainda: 804 956 portugueses já tiveram covid, 720 235 estão recuperados, 68 370 permanecem ativos e desses 41 227 são pessoas em vigilância. Mas há só 2167 internados em hospitais e apenas 469 desses estão em camas de UCI. E o dado mais importante: já foram administradas 837 887 doses de vacina anticovid. É um marco histórico: pela primeira vez na pandemia, o número de vacinados já supera o número de casos totais nacionais.
Patrícia Cardoso, enfermeira-chefe do serviço de Medicina Intensiva 6, que seguiu as alegrias do senhor Joaquim, sorri de alívio. "Há um ano e nos meses depois, sentia-se a tensão, eu trabalhava 12 horas, dormia sete e depois mais 18 seguidas, sabíamos que desconhecíamos muita coisa, o medo andava connosco no ar. Hoje, olhe, repare, mesmo aqui na UCI já vê gente a sorrir, a acreditar. A doença ainda é grave, mas o caos está controlado. Foi a nossa organização, a antecipação, isso salvou muitas vidas, estamos confiantes de que o pior do tsunami já passou".
Depois dos dias incontáveis, dos recursos da fadiga esgotados, da sombra sem fim, Juliana Gomes, assistente operacional na UCI - "aqui é sempre tudo frenético, mas com a covid-19 aumentou 300%" - só tem desejos. São como os nossos e os vossos: "Voltar a sair, jantar sem medos com amigos, voltar a tocar, tocar, tocar. O convívio é o que me dá mais saudades do futuro".
13408087