Mariana Mortágua: "O PS alimenta o ressentimento que faz crescer a extrema-direita"
Descolar o Bloco do PS, desbravar caminho à Esquerda e manter a trajetória de crescimento do partido, tornando-o no terceiro mais representativo do Parlamento. Mariana Mortágua rejeita ser muleta dos socialistas, acusa a Direita de não ter um projeto para o país e usa palavras duras para se referir ao relacionamento entre primeiro-ministro e presidente da República. O país real, sublinha, tem outras preocupações. Mas o país político, lamenta, está mergulhado num "pântano".
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O BE perdeu mais de 300 mil votos e 14 deputados entre 2015, quando começou a geringonça, e 2022, quando António Costa obteve a maioria absoluta. Olhando para trás, podemos dizer que o partido foi um pouco ingénuo ao pensar que se tornaria num aliado tradicional em governos de Esquerda?
Para já, devo dizer que acho que, hoje em dia, o BE está a crescer. E cresce, precisamente, porque há cada vez mais gente que entende que a maioria absoluta não responde aos problemas do país. Quanto ao resultado eleitoral anterior, acho que sabemos as suas condições, isso foi sobejamente analisado. Há uma coisa que sei: o papel do BE não é um papel de auxiliar. Não existimos para auxiliar o PS a executar o seu programa. O papel do BE existe enquanto puder usar a relação de forças para impor medidas do seu programa ou para travar medidas com as quais não concorda. A partir do momento em que se entende que o BE deve ter um papel de cheque em branco e, simplesmente, apoiar orçamentos ou governos sem ter qualquer influência e capacidade de determinar a governação, acho que o BE deixa de ser útil. Foi essa a escolha que tivemos de fazer na altura e penso que as pessoas a compreendem. Hoje, quando olham para o SNS, sabem perfeitamente por que é que fizermos a luta pelo serviço público de saúde, bem como as razões dessa luta.
Definiu como grande meta voltar a ser a terceira força política no Parlamento. Isso é mais importante do que voltar a ter uma voz ativa na governação do país? Ou as duas coisas não são contraditórias?
De todo. O objetivo de qualquer força política é ganhar influência, e o objetivo do BE é ganhar espaço político. Em 2019, o PS, ao rejeitar a segunda geringonça, um segundo acordo escrito e a possibilidade de abrir novas políticas à Esquerda, disse ao país que não há política à Esquerda e que essas políticas são impossíveis por serem radicais. Ou seja, o que disse foi que todo o campo político só existe à Direita e não à Esquerda. E isso tem sido o terror e o desastre do país. É ter uma maioria absoluta que não responde aos problemas e, depois, um espaço de debate e de centralidade de resposta política que só existe à Direita. Isso é uma escolha entre o mau - a governação do PS em maioria absoluta - e o pior - um Governo de Direita. O papel do BE é reabrir o campo da política à Esquerda. Para o fazermos, precisamos de ter uma boa relação de forças. Aí, apoiamo-nos no nosso programa político, centrando-nos em soluções para as pessoas e nos movimentos sociais, que crescem e a que também almejamos dar uma voz.
Tornou-se coordenadora do BE no final de maio. Embora a sua capacidade técnica seja reconhecida, o seu à-vontade nas ruas pode gerar mais dúvidas. Sente essas dificuldades?
[Sorri] Convido-o a vir comigo. Quando quiser, no dia em que quiser, onde quiser, e vamos ver esse à-vontade nas ruas. Não há nenhuma razão para não ter à-vontade. Sinto-me bem nas ruas, sempre me senti, porque ando de cara levantada e posso olhar de frente todas as pessoas, sempre. Porque faço política com convicção, sempre fiz aquilo em que acreditava, e esse é o maior ativo que temos quando fazemos política.
Mas reconhece que a projeção que terá agora como líder a obriga a fazer alguns ajustes?
O BE nunca saiu da rua e está na rua para além da presença da coordenadora. O facto de a imprensa acompanhar a coordenadora na rua não quer dizer que nós todos não estejamos na rua - em campanha ou fora dela. Eu sempre fiz esse papel no BE e, portanto, podem contar com tudo isso. Eu sou quem sou, não vou deixar de o ser. E, aliás, é isso que trago para a coordenação do BE. O que digo é que estou tão à vontade na rua como no Parlamento ou numa sala de comissões. É óbvio que são aspetos diferentes, mas estou muito à vontade. Não é nada que me deixe ansiosa ou, sequer, que seja novo para mim.
Um dos reparos que os seus críticos internos fizeram na convenção de maio foi que o slogan "Vida Boa", que a sua moção adotou, é vago e não vincula o partido ao socialismo. E, de facto, da Esquerda à Direita, todos defendem uma vida boa, ou não?
Será que defendem? Tenho visto muita gente que defende o negócio imobiliário acima do direito à habitação, e eles, hoje em dia, não são compatíveis. Quem defende o direito à habitação defende que ele se traduza numa casa que todas as pessoas possam pagar, de acordo com os seus rendimentos. É só disto que estamos a falar, mas nem toda a gente defende isto hoje em dia. Quem está a defender políticas que privilegiam o negócio imobiliário ou o turismo selvagem não está a defender uma vida boa para toda a gente. A vida boa não é um programa de intenções, uma convicção ou um sonho. É um programa político, que diz o seguinte: as coisas mais básicas da nossa vida são poder ter educação, acesso a uma casa que possamos pagar, um salário que permita dormirmos descansados, saber que temos cuidados quando estamos doentes ou quando temos filhos... No fundo, que essas coisas básicas não sejam uma fonte de preocupação permanente. E só o são, hoje em dia, porque não estão asseguradas. Como é que podemos almejar a construir um país melhor, a diversificar os nossos interesses e a poder realizar-nos pessoalmente quando não conseguimos, sequer, assegurar o básico? Não ter casa tira o sono a muita gente neste momento. E não é só a gente de 20 anos, mas também de 30, 40 e 50 anos. Essa é a proposta da "vida boa": uma vida em que as coisas mais básicas não tenham de ser uma luta diária. Esta proposta, enquanto projeto coletivo, é a coisa mais real e justa que temos por que lutar neste momento.
No final do verão, o país começará a discutir o Orçamento do Estado. Que grandes temas é que o BE levará a discussão?
São vários. Há uns que, neste momento, é impossível não apontar como essenciais. A habitação é um deles. As medidas postas em prática pelo Governo não vão resolver o problema da habitação porque não vão controlar os preços. Os preços continuam a disparar e, mesmo que não subam mais, já tornam a habitação num sonho impossível para a maior parte das pessoas. As nossas respostas muito concretas têm a ver com o limite às rendas e ao alojamento local (AL). Muitas outras cidades já o fizeram, a maior parte das capitais europeias tem limitações ao AL. Em Portugal, parece que estamos a falar de um anátema ou de uma coisa impossível de se conseguir, quando é do mais elementar bom-senso limitar uma atividade que está a impedir o direito à habitação. Portanto, há um conjunto de medidas urgentes, que têm de ter impacto agora.
E na área da Saúde?
O Serviço Nacional de Saúde (SNS) também é uma prioridade. Se nada for feito, a drenagem de recursos que está a acontecer vai fazer com que, daqui a meia dúzia de anos, possamos não ter um SNS a que nos agarrarmos. Quando nos dizem que o privado é igual ao público, devemos perguntar-nos: quando uma mulher está a ter um parto no privado e alguma coisa de mal acontece, é para o público que a enviam. E, quando não houver público, enviam para onde? Ou melhor, para onde enviam o cheque da intervenção que tem de ser feita? É importante proteger o SNS.
O que o PS está a fazer é, na prática, entregar o SNS ao privado
A gestão profissionalizada do SNS, com uma direção executiva, não mudou esse estado de coisas?
Esta gestão não fez nada, ainda. A única coisa que está a fazer, juntamente com o ministro da Saúde, é gerir uma manta pequena. A manta não aumentou, portanto está a fazer-se uma rotação de maternidades, fechando serviços à vez e gerindo-se um SNS que está em degradação - e que só não se degrada mais porque tem profissionais que o mantêm. O que o PS está a fazer é, na prática, entregar o SNS ao privado: os tarefeiros aumentam, as contratualizações privadas aumentam, as prestações de serviços no privado aumentam... Aquilo que os liberais e a Direita dizem que tem de ser feito é o que o PS está a fazer. Há cada vez mais partes do SNS, algumas vezes especialidades inteiras, que estão entregues ao privado, pagas com dinheiro do Estado. O que dizemos não é uma questão de privado ou público; é que se gasta mais dinheiro assim para ter um serviço que, no futuro, será pior. Porque vai haver um dia em que, se o SNS não conseguir providenciar esses serviços, o privado vai comprar o que quiser, porque vai ter todo o poder para o fazer. É perigoso deixar o país sem SNS. A terceira prioridade [para o Orçamento] tem a ver com a escola pública, que está em risco de não ter professores e, portanto, de ter alunos sem aulas. Esse é o grande problema. Depois, há ainda a situação dos salários e da inflação. Os preços continuam a subir. O preço do cabaz essencial, que tem o IVA zero fruto de um acordo de cavalheiros em que o Governo pediu, por favor, aos grandes supermercados para não aumentarem os preços, acabou em mais uma subida de preços de 10% numa semana. Os contribuintes estão a entregar dinheiro do IVA diretamente para o bolso da Jerónimo Martins e da Sonae. Este é o tipo de medida que, conjugada com os baixos salários, está a arrasar o país, impedindo que este se desenvolva e condenando uma larguíssima parte da população a um empobrecimento acelerado.
Provavelmente vai responder que ainda falta bastante tempo para as europeias, mas a verdade é que já não falta assim tanto: Catarina Martins seria uma boa cabeça-de-lista para essas eleições? E Francisco Louçã, é uma carta fora do baralho tanto para as europeias como para as presidenciais?
Peço que me perdoem, porque não tenho resposta para vos dar. Falta, de facto, bastante tempo. O BE tem muitíssimos quadros qualificados e a Catarina Martins é uma das pessoas mais qualificadas do BE. Faz parte da direção, acabou o seu mandato como coordenadora e eu quero dar-lhe o descanso que ela merece. Portanto isso são conversas para depois, não para este momento.
Falta menos tempo para as eleições regionais na Madeira. Na convenção, disse que um dos seus primeiros grandes objetivos é fazer com que o BE volte a ter representação parlamentar no arquipélago. Pode depreender-se que não o conseguir será um fracasso?
Pode depreender-se que o BE quer eleger na Madeira. Achamos que é importante e que há condições, porque o partido está a crescer e há um reconhecimento público do trabalho que estamos a fazer. Se, a nível nacional, há uma falência das políticas da maioria absoluta, na Madeira há uma falência das políticas da maioria PSD, que pinta a Madeira como um paraíso na terra. Qualquer discurso do PSD sobre a Madeira é um ato de publicidade. Mas, quando vamos ver, a Madeira tem das maiores desigualdades do país, das maiores bolsas de pobreza do país, dos salários mais baixos do país e, surpreendentemente, das casas com os preços mais altos do país. E tudo isto com uma concentração de poder, e de poder económico, que é opressora para a liberdade de opinião política e para as alternativas de governação. Sabemos que o PS/Madeira não é alternativa, porque está envolvido precisamente com os mesmos poderes económicos que albergam e abraçam o PSD. A Direita fará o que o CDS fez: à primeira oportunidade, irá para o Governo com Miguel Albuquerque. Neste cenário, o BE pode, deve e vai ser, quanto a mim, uma voz muito importante no Parlamento da Madeira, não só para fazer uma política de escrutínio e transparência mas, também, para trazer alternativas políticas. Há um campo de possibilidades para os problemas que hoje enfrentamos que não está a ter a atenção devida porque o debate se deslocou para a Direita. Nós queremos retrazê-lo e centrá-lo em políticas para resolver os problemas das pessoas.
E essa alteração de que fala deve-se a quê? Foi mérito da Direita? A Esquerda esteve demasiado adormecida?
De todo, não me parece que haja algum mérito [da Direita]. Aliás, a Direita não tem nenhuma proposta concreta para o país, e isso é que forma um bocadinho este pântano, este momento político difícil. À Direita, não há nenhuma solução. É óbvio que o PS, a partir do momento em que elegeu a narrativa das contas certas - ou as almofadas financeiras que se ultrapassam todos os anos -, passou a adotar políticas como a dos apoios pontuais em vez de aumentar salários ou de ter políticas sociais robustas, retirando esse campo à Direita. Quis ocupar um campo que é, em muitas medidas, da Direita. E o PS faz isto escolhendo sempre um confronto com a Direita, optando por não o fazer com a Esquerda. Assim, escolhe nunca discutir as políticas com a Esquerda. Por isso, a política é, hoje, muito mais a discussão de casos, como o do cartaz e da caricatura, e menos a discussão de medidas para ter professores nas escolas, como a Esquerda quer. Enquanto esse debate continuar a ser relegado para segundo plano, o país fica no vazio da política. E no vazio da política só há pântano, não há mais nada.
No vazio da política só há pântano, não há mais nada
O Governo ainda tem condições para continuar em funções?
Em maioria absoluta, um Governo só cai por vontade própria ou por extrema incompetência. De uma ou de outra forma, é sempre responsabilidade do próprio: ou porque decidiu abandonar ou porque não criou as condições mínimas para garantir a governabilidade. É óbvio que há uma degradação da maioria absoluta e um desgaste da sua capacidade de responder ao país. São problemas conjuntos. Um Governo que está sistematicamente preocupado em resolver casos não tem cabeça para estar a pensar em resolver os problemas da habitação ou dos professores. E, por não resolver esses problemas, está a alimentar uma crise política, que é uma crise de casos e que não tem nada a ver com o centro da política. Esta bola de neve está a degradar as condições da maioria absoluta. Mas penso que o mais importante, neste momento, é deixarmo-nos de jogos de poder. Acho lamentável o que está a acontecer entre o presidente da República e o primeiro-ministro. São dois elementos-chave para engendrar a maioria absoluta em Portugal, participaram ambos na ficção e na criação da crise política que deu origem à maioria absoluta e, agora, entretêm o país nestes jogos de metáforas - e até de algumas referências botânicas - para não falarem do que interessa ao país, que são as soluções. Os professores continuam na rua, os oficiais de justiça sabem que os tribunais têm de ter investimento e o SNS está como está. Este é o paradoxo e o drama da maioria absoluta: está tão enredada nos casos que não consegue responder ao país.
Podemos depreender das suas palavras que é menos mau o Governo continuar do que irmos para eleições?
O Governo foi eleito há menos de dois anos. Tem condições para governar, pediu uma maioria absoluta, disse que ia dar estabilidade ao país e que se ia livrar dos empecilhos da Esquerda. Portanto, tem de governar e de dar soluções ao país. Parece-me que o que tem de fazer para isso é ouvir as soluções que quem está na rua lhe aponta. Hoje temos movimentos sociais que crescem por soluções concretas: para dizer que no SNS é preciso fazer isto, na escola pública aquilo, na justiça aqueloutro, no ambiente isto e aquilo. E, em vez de ouvir quem tem as soluções para os problemas que afetam a vida das pessoas, temos as duas mais altas figuras da nação entretidas num jogo de indiretas mais ou menos diretas. Depois, a política torna-se o comentário ao comentário do comentário, e não a solução para o problema real. Temos de sair deste drama.
É possível um Governo de Esquerda com Fernando Medina como ministro das Finanças?
Não falo em cenários hipotéticos, acho que não é justo fazê-lo. Sou dirigente partidária e seria uma irresponsabilidade comentar cenários hipotéticos de um país que não conheço e de partidos que não existem agora. O que posso dizer é que, neste momento, temos uma maioria absoluta de um PS que prometeu estabilidade e que está a enredar o país num sem-fim de não soluções para a vida das pessoas. É isto que constato neste momento.
Mas o ministro das Finanças continua a ter um ascendente excessivo sobre as políticas do Governo, ou não?
Não sei se é o ministro das Finanças que tem, porque já vamos no terceiro ministro das Finanças. Parece-me ser mais uma estratégia de governação do que propriamente uma característica pessoal do ministro das Finanças. O PS encontrou uma forma de governar que é deixar a corda esticar, esticar, esticar e, enquanto isso, fazer toda a poupança necessária. Portanto, chega sempre ao fim do ano com uma folga orçamental brutal face ao que tinha planeado. Diz que isto são contas certas. Eu acho isto uma manipulação total do debate público e das contas públicas. E depois, quando a corda estica ao ponto de rebentar, soltam-se uns apoios pontuais - que são muito importantes para as pessoas, eu não estou a negar - mas que não são políticas estruturais, não vão a lado nenhum. É um Governo dedicado a gerir o presente, sem ter qualquer capacidade para influenciar e determinar o futuro.
Essa estratégia é eleitoralista, no sentido de criar dependência dos cidadãos face ao Estado?
Eu não diria que é eleitoralista desse ponto de vista. Ela é eleitoralista na medida em que o PS acha que, enquanto falar das contas certas desta forma, consegue convencer um eleitorado do centro político e consegue esvaziar o PSD da sua grande bandeira, que são as contas certas. Mas não percebe que essa narrativa tem um custo, que é não investir em Portugal. De não investir mesmo. Porque se abdicamos de comprar hoje uma máquina de radiografias para um hospital vamos gastar, em dois anos, a contratualizar com o privado, o custo daquela máquina de radiografia. E, se abdicamos hoje de ter carreiras para médicos, amanhã vamos estar a gastar mais em tarefeiros, como hoje acontece - e que desorganizam os hospitais, porque não são do quadro, não estão inseridos nas equipas -, que saem mais caros do que investir nas carreiras. As decisões tomadas em prol desta estratégia de apresentar contas certas que não são contas certas minam a capacidade de gerir um país de forma estrutural e a longo prazo. Essa é a maior irresponsabilidade do PS, porque não cria estrutura para o futuro. Gere só o presente e tenta sustentar o descontentamento com medidas muito particulares, ou criando bodes expiatórios, casos ou distrações. Isso faz mal à democracia.
O PS encontrou uma forma de governar que é deixar a corda esticar, esticar, esticar
A habitação tem sido uma das bandeiras do BE. Que medidas defende?
Há várias. É preciso perceber que a habitação tem vários problemas que se têm vindo a acumular. Há, desde logo, um problema de excesso de turismo. Nós não somos contra o turismo, mas somos críticos de um modelo de dependência excessiva do turismo - que cria baixos salários, trabalhadores precários e um problema na habitação. Em 2023 vai abrir um hotel novo a cada cinco dias. Pode haver zonas do país em que faça falta um hotel mas, na maior parte dos sítios em que eles estão a ser construídos, - Lisboa e Porto -, há prédios inteiros alocados a hotéis e que eram de habitação. Em Lisboa há freguesias com 60% de AL, no Porto não há qualquer tipo de regulamentação ao AL. Aliás, há um presidente da Câmara que, tal como Medina fez em Lisboa, diz que "quanto mais, melhor", e que o que importa é o negócio acima de qualquer coisa. O resultado são cidades que estão cada vez mais transformadas e ocupadas pelo turismo. Achamos que é preciso haver uma moratória a novos hotéis e que, portanto, durante um período se deve impedir a construção de novos hotéis, permitindo exceções. Também defendemos regras para o AL: uma coisa é eu ter a minha casa e querer alugá-la durante um período do ano; sem problema, o AL pode servir para isso. Mas ser uma empresa que tem cinco, 10, 15 casas de AL, que antigamente eram para alugar a famílias, é um problema. Mais: quando se transformaram as casas em AL, pegaram-se em T2 e T3, que eram casas de família, e transformaram-se em T0. E hoje, quem quer ter filhos não encontra uma casa onde viver nas grandes cidades. É impossível dizer que o turismo não teve um impacto na habitação. Segunda questão: os não residentes, ou seja, pessoas com salários muito acima do nível dos de Portugal, que compram casas cá. Como têm poder de compra, inflacionam os preços. Há mil milhões gastos num benefício fiscal a residentes não habituais, que passam aqui seis meses, compram uma casa para o comprovar e pagam poucos impostos sobre o trabalho e sobre rendimentos de capitais. Este benefício está a tirar a casa a quem quer viver nas grandes cidades. Em 2022, só no centro de Lisboa - e no Porto é semelhante -, os não residentes gastaram 900 milhões para comprar 1655 casas. E, em média, o preço destas casas é 95% superior às dos residentes. É uma concorrência impossível e só há uma forma de a combater: acabar com o regime dos residentes não habituais e, nas grandes cidades, proibir a venda de casa a não residentes. Se quer trabalhar em Portugal, muito bem, compre uma casa. Mas as nossas cidades não podem ser um mar de casas vazias para quem trabalha noutro país e tem os seus rendimentos para fundos de investimento noutros países. O Canadá já o fez e tem um Governo liberal. Portanto, é de elementar bom senso que isto possa ser feito. Há, depois, um problema de especulação: fundos imobiliários que deixam casas vazias. Há um IMI agravado para prédios devolutos mas depende da boa vontade das câmaras, e elas não complicam. O que é preciso é centralizar este IMI para que a Autoridade Tributária possa identificar essas casas e elas paguem automaticamente o IMI agravado. Finalmente, é importante limitar as rendas, pondo-lhes um teto máximo. Pode ser o teto máximo que é hoje aplicado ao Porta 65, e que está adequado às regras de mercado e às diferentes localizações. Mas é preciso um teto máximo para que as pessoas possam conseguir pagar uma casa. Estes são alguns tipos de medidas. Depois temos outras, que têm a ver com o crédito à habitação e com que os bancos possam absorver parte do impacto do aumento dos juros, uma vez que têm lucros astronómicos.
Apesar disso, muitos veem o turismo como uma espécie de "galinha dos ovos de ouro" da nossa economia. Tendo isso em conta, algumas das medidas que elencou não serão demasiado restritivas? E a moratória de que falou aplica-se só a Lisboa ou também ao Porto e a outros locais?
Queremos aplicar estas medidas a zonas de grande pressão urbanística. Hoje, Lisboa e Porto são esse tipo de zonas. Ou o Funchal. Nessas zonas, é preciso aliviar a atividade do turismo, porque há demasiada concentração. E nem falo dos problemas ambientais, estou a falar só de direito à habitação. Se for a certas zonas do Alentejo, não sei se não lhe vão dizer que, ali, esse tipo de limitações também é necessário. Por exemplo, alguém que abra um restaurante em Porto Covo e precise de trabalhadores, não consegue. Porquê? Porque eles não têm onde morar. Portanto, é preciso haver uma combinação entre limitação a uma atividade que tem de ter regras - todas têm, é por isso que vivemos em sociedade - e perceber que, em alguns sítios, construir mais pode ser resposta, mas noutros não. Temos de combinar estas medidas de forma equilibrada para ter bom senso. Agora, este radicalismo de achar que estas atividades podem correr sem nenhum tipo de limite ou que, independentemente da consequência, é preciso andar com elas para a frente porque há uma bolha, só dá mau resultado. E, daqui a uns anos, estamos a perguntar: "Mas por que é que não parámos isto a tempo? Por que é que não pusemos limites? Por que é que deixámos que Portugal fosse uma economia baseada em baixos salários e em turismo?". É isso que, atempadamente, estamos a tentar evitar.
Se hoje, em Portugal, o descontentamento cresce, como explica que o Chega continue a ser o terceiro partido em todas as sondagens? Com a geringonça, o BE não terá passado a ser visto por muitos como uma mera "voz da consciência" do PS, que não pretende mais do que viabilizar Governos desse partido?
O BE é acusado de tudo [ri-se]: às vezes é acusado de não querer viabilizar Governos do PS quase por mau feitio, outras vezes é acusado de só existir para ser uma muleta do PS. Nenhum dos dois casos é verdade. O BE tem um projeto para o país e a sua ação na política depende da relação de forças. Hoje há muita gente preocupada com a ideia de um Governo de Direita. Eu compreendo que estejam. Mas, para não haver um Governo de Direita, basta não haver uma maioria de Direita. E, para não haver uma maioria de Direita, um voto no BE conta tanto como um voto no PS. O que define, depois, o papel e a capacidade do BE é a relação de forças, nomeadamente entre o PS e a Esquerda. É isso que define o futuro da política. O PS achou que podia quebrar essa relação de forças fazendo uma chantagem ao país - que resultou - e dizendo: "Ou nós ou a extrema-direita! Maioria absoluta! Estabilidade!". Gostaria de perguntar a quem votou nessa altura no PS, com medo da Direita, em que é que isso resultou. A maioria absoluta é uma forma eficaz de travar a Direita em Portugal? Não. A única forma de o fazer é dando às pessoas a esperança de que é possível construir um país melhor, esperança de que haja solução para os problemas que as afetam. Porque, enquanto todas as medidas que podem resolver a vida estiverem limitadas - seja por serem impossíveis, radicais, caras ou tudo o que o PS vai inventando para não discutir soluções - a única coisa que resta é ressentimento e medo. E vamos ter um país que vai votar no PS por medo da Direita. Isso já deu a maioria absoluta [ao PS]. A democracia tem de ganhar espaço para que soluções à Esquerda ganhem uma nova centralidade. O programa da Esquerda está alicerçado nas reivindicações e soluções dadas pelas pessoas que têm a experiência diária de serem professores, médicos ou oficiais de justiça. São elas que nos podem dar as respostas para conseguirmos abrir este campo de esperança e de política.
O BE tem atribuído ao PS muita da responsabilidade pelo crescimento da extrema-direita. Mas a Esquerda não terá passado demasiado tempo a falar da extrema-direita e menos dos problemas do país?
Oiço essa crítica muitas vezes e nunca encontro fundamento para ela. Quando as pessoas ligam a televisão e veem o BE a falar, digam-me qual foi o dia em que não falámos dos problemas do país. Criou-se esta ideia de que o BE vai atrás da agenda da Direita quando não o temos feito. Temos agendas importantes: o antirracismo, a causa LGBT, o feminismo, a igualdade entre homens e mulheres. Todas elas já eram lutas do BE muito antes de haver fenómenos de extrema-direita em Portugal. E eram porque acreditamos que são condições de democracia. Não vamos deixar de falar delas porque apareceu uma extrema-direita oportunista a querer fazer uma agenda. Mas de forma nenhuma nos desviámos um milímetro, penso eu, do centro da ação politica, que é o facto de as pessoas estarem a perder poder de compra, ou os problemas na saúde e na habitação. É sobre isso que as pessoas veem o BE a falar todos os dias, pelo que tenho muita dificuldade em aceitar essa crítica. Acho que o PS tem um problema: o seu discurso não corresponde à sua prática. Quando o PS diz "venham imigrantes", diz bem, porque precisamos de imigrantes e eles dão um contributo crucial para a Segurança Social. Só que, ao mesmo tempo, o PS está a condenar esses imigrantes a trabalho de exploração, precário, a viver em contentores ou em beliches, 30 no mesmo quarto, Isto não é dar resposta à extrema-direita, pelo contrário: é uma economia de ressentimento que não resolve os problemas do país. Ao não dar resposta aos problemas da habitação e da saúde, o PS alimenta essa economia de ressentimento. Da mesma forma, a política dos apoios sociais pontuais, em vez de salário ou de apoios estruturais, o que faz é alimentar a política do ressentimento. "Por que é que aquele recebeu e eu não? Por que é que um euro a mais no meu rendimento não dá direito a apoio e um euro a menos já dá?". Sempre que as políticas são 'ad hoc', como têm sido - e não estruturadas, pensadas, de respostas sociais -, elas correm o risco de criar este tipo de ressentimento, e é lamentável que o façam. Pela ação política, ao não dar resposta aos problemas sociais, o PS alimenta o ressentimento. Não digo que alimente a extrema-direita, mas alimenta o ressentimento que faz crescer a extrema-direita. Esta análise está feita por toda a Europa: o crescimento da extrema-direita tem a ver com a falência dos Estados do Centro - do Centro mais ou menos liberal, mas é mais ou menos tudo o mesmo - em dar resposta as questões sociais. E, depois, o que é que esses Governos do Centro fazem? Não dão resposta aos problemas sociais mas dizem: "Votem em mim, senão vem aí a extrema-direita". Esta é a estratégia de [Emmanuel] Macron [em França], sem tirar nem por. E é uma estratégia que António Costa tenta imitar em Portugal, Essa denúncia tem de ser feita. Com conta, peso e medida e com a análise correta, mas tem de ser feita.
Presidente da República e primeiro-ministro enredaram-se numa patologia de poder
Como viu a polémica dos cartazes dos professores? A luta da classe pode sair afetada?
Em primeiro lugar, acho que aqueles cartazes são um ato insultuoso, violento, sem nenhuma razão de ser, gratuito... Não há outro intuito naqueles cartazes que não o insulto pessoal. Isso, obviamente, tem de ser condenado. Não é uma forma de fazer política, pelo contrário: de cada vez que o ódio domina a política e a contestação, o resultado é sempre contraproducente. Como tal, deve ser condenado. Acho é que não podemos confundir um cartaz numa manifestação com uma luta de anos de centenas de milhar de professores que, certamente, não se reveem naquele cartaz único. Portanto lamento também, e acho que é igualmente mau, que haja quem se queira aproveitar de um caso único para lançar um anátema e uma culpa coletiva sobre professores, que têm estado a mostrar ao país - e, a meu ver, a conseguir - que lutam pela escola pública e que, se não os ouvirmos, não garantimos que os alunos tenham professores nos próximos 10 anos. Isso é o mais grave. É preciso garantir que este ato, que tem de ser condenado, não contamina todos os professores que estão na rua para defender a escola pública, que é de todas nós.
O BE pediu que o primeiro-ministro explicasse ao Parlamento o envolvimento do SIS no caso do ministério das Infraestruturas. Ao não o fazer, António Costa está a deixar o ministro João Galamba definitivamente sozinho?
É pior do que isso. O país está cansado de discutir este tema. Há uma questão de fundo que é relativamente importante: o SIS foi mobilizado de forma ilegal. É óbvio que isto é importante, porque temos órgãos de informação do Estado que podem estar a ser utilizados ilegalmente. Isto não é menor para a democracia, é uma questão de Estado de Direito. O Governo tem de esclarecer: ou foi um ato do Governo - e então foi um erro, sendo que alguém tem de assumir a responsabilidade - ou foi um ato do SIS - e, nesse caso, alguém tem de assumir a responsabilidade dentro do SIS. Essa é, para mim, a questão mais importante. Por que é que o primeiro-ministro arrasta esta história sem fim, arrasta o ministro João Galamba e se entretém nestes jogos de mensagens por metáforas com o presidente da República? Infelizmente, a única conclusão que posso tirar é que está interessado em alimentar este caso e que não quer resolvê-lo para, depois, seguir para outros assuntos.
Que vantagens traria isso ao Governo?
Sinceramente, não sei. A degradação do Governo é a degradação do país. Enquanto as pessoas sentirem que não têm uma resposta para os seus problemas, e enquanto os preços continuarem a subir como estão... Às vezes há a ideia de que, se a inflação é mais baixa, os preços caem. Não caem, estão só a subir menos. E os salários não aumentaram. Com uma agravante: num salário de 600 euros, a conta do supermercado vale muito mais do que num salário de 6 mil euros. Portanto, para a maior parte das pessoas, a inflação não foi só aquela que se registou. Foi o dobro ou o triplo, porque é a conta do supermercado ou a renda da casa que se faz valer. Sem dar resposta a estes problemas, o Governo vai-se enredando em todos estes casos. E os casos vão-se prolongando, porque não só a Direita não tem programa - e, portanto, não tem outra coisa de que falar - mas, também, porque o Governo parece não querer dar respostas cabais que enterrem o assunto de uma vez por todas. A manutenção do ministro Galamba no cargo é uma dessas decisões que eu, sinceramente, tenho muita dificuldade em compreender. Aliás, para bem do Governo e para que se possa avançar, já disse que o ministro João Galamba devia ser afastado, de modo a que o Governo possa, finalmente, dedicar-se a resolver os problemas que contam.
Numa entrevista recente, deu a entender que não há mais aproximação entre BE e PCP porque os comunistas dificultam a intervenção do BE no meio sindical. Apesar das muitas críticas ao PS, o BE considera mais fácil entender-se com o partido de António Costa do que com o PCP?
As coisas não são bem assim. O BE e o PCP têm um campo imenso de convergência, desde logo programática, mas convergência nas causas mais básicas. Temos divergências conhecidas - desde logo internacionais, como a questão da guerra da Ucrânia, tal como antes tivemos sobre Angola e a China. Temos divergências internas que também são importantes, a eutanásia foi a sua expressão mais recente. E temos divergências na forma como cada força política está no movimento social. No caso do BE, fazemos a defesa do pluralismo e de formas de estar que sejam mais abertas e capazes de ter uma maior articulação. Isso são visões diferentes. Sobre o movimento sindical em particular, é pública - já o disse antes -, a dificuldade que as minorias na CGTP têm em ter um papel ativo, abrindo os sindicatos. Mas, independentemente disso, o campo da convergência política é com o PCP. Temos muita convergência política e programática e queremos fazê-la, no dia-a-dia das várias lutas onde nos encontramos, da habitação ao salário, da saúde à escola pública.
Mas por que é que o BE ainda não conseguiu maior ascendente sindical? É uma questão histórica, de mensagem?
Em primeiro lugar, o BE tem uma forma diferente de organização na sociedade. Sempre teve e nem todos os partidos têm de ter o mesmo tipo de organização ou de interação com o movimento social e sindical. O BE tem ativistas destacados...
Mas falo, sobretudo, no movimento sindical tradicional, chamemos-lhe assim. É esse que, na verdade, toma conta da rua.
Acho que temos de fugir um bocadinho à ideia sobre o que é o tradicional. Eu vi a rua a ser tomada por movimentos muito diferentes ao longo dos últimos tempos. O sindical certamente, e o BE lá está, quer em comissões de trabalhadores, quer em sindicatos. Os professores são um belíssimo exemplo de presença do BE. É verdade que o BE também tem uma atitude perante os movimentos sociais que é de participação plural e de compreender que essa pluralidade existe. Há um fechamento em certos sindicatos, em certas zonas do movimento sindical, que impede uma participação mais ativa de minorias, nomeadamente dentro da CGTP. Esse é um diagnóstico que está feito há muito tempo. Por outro lado, o BE tem tido alguma preocupação em ajudar a potenciar movimentos que nunca tiveram expressão sindical, quer porque são precários - e, portanto, fogem à malha dos sindicatos -, quer porque são trabalhadores imigrantes de plataformas ou trabalhadoras domésticas, amas ou de limpeza. Há ainda o movimento da habitação, por exemplo. Por isso é que acho que não devemos criar uma imagem única do que deve ser o movimento sindical, laboral ou social. Ele revela-se de diferentes formas. E nem faço uma ligação direta entre isso e resultados eleitorais. Voltamos à mesma questão de sempre: o objetivo é ganhar espaço, campo e influência. Isso é mais importante do que qualquer avaliação eleitoral que se possa fazer.
Depois do desentendimento com o primeiro-ministro, o presidente da República prometeu que se tornaria mais vigilante, tendo até anunciado um Conselho de Estado. Como olha para essa tomada de posição?
Não vejo grandes alterações no estilo da presidência nos últimos tempos. Acho que tanto o presidente da República como primeiro-ministro se enredaram numa patologia de poder, numa demonstração quase patológica de poder, de jogos de poder, de influência, para ver quem é que manda, quem encosta o outro à parede, quem consegue ter a última palavra. É quase irónico, vindo das duas pessoas responsáveis por criar as condições que deram origem à maioria absoluta. Fazem questão de tornar o seu desentendimento público e de enxamear o debate público com esse desentendimento. Basta ver a atualidade dos últimos dias: discute-se a metáfora botânica do presidente e as interpretações que toda a gente faz dessa metáfora, bem como da resposta do primeiro-ministro. A única questão que era importante era o motivo de os legumes estarem tão caros no supermercado, não é a metáfora botânica sobre o poder. Por isso, acho que nem o presidente da República nem o primeiro-ministro têm estado à altura dos problemas que o país enfrenta. É neles que nos devemos centrar.
Como convenceria um jovem a votar no BE e não no PCP, no PS ou, já agora, na IL, que tem disputado o eleitorado jovem com o BE?
A IL fez questão de mostrar aos seus próprios jovens por que é que não vai resolver nenhum dos problemas deles. Perante um mercado imobiliário que não dá resposta - e os jovens são dos mais prejudicados por isso -, a IL não diz nada. Se o mercado decidiu que é assim, é porque este é o resultado do mercado. Se o mercado decidiu que serás precário a vida inteira, e ter um trabalho que não te paga apesar de seres uma pessoa qualificada, o mercado dita: emigra. As leis do mercado são simples. Quem defende o mercado diz: se estás mal, muda-te. Isso não pode ser uma resposta. Não podemos continuar a dizer aos jovens que a única solução para ter uma vida boa com condições de dignidade e de estabilidade é saírem do país. Não podemos dizer isso às pessoas. Eu gosto de aqui viver e quero que as pessoas possam viver aqui. Este é o maior argumento. Paralelamente, esta cultura de hiperindividualismo, de responsabilização das pessoas pelo seu próprio sucesso e fracasso, que não tem projeto coletivo nem laços de solidariedade, não só é errada como é a chave para uma vida de ansiedade e de hiperresponsabilização individual das pessoas. Somos um coletivo e temos de responder coletivamente pela vida de todos e todas. Isso não significa dirigir a vida de ninguém, pelo contrário. É dar condições para que todas as pessoas possam ser o melhor que querem ou podem ser. E os liberais não têm resposta para isso.
Deu-me os argumentos para um jovem não votar na IL. E para votar no BE em vez de no PCP ou no PS?
A resposta aí é muito clara. Basta ver onde está a discussão sobre soluções e transformações. Houve um momento, que eu não sei qual foi, em que desistimos de lutar pelo país que podemos ser. Desistimos, sequer, de imaginar o país que podemos ser e passámos a gerir o país que somos, sem nunca acreditarmos que podemos ser diferentes. A melhor coisa que posso dizer - a um jovem, a um adulto ou a uma pessoa mais velha - é que é possível lutar por um país diferente. É possível olharmos para as qualificações, para a habitação, para os serviços públicos, e ter um programa concreto para alterar o SNS, a escola pública, para termos melhores salários, menos precariedade, melhores empregos, mais diversificação produtiva... Podemos imaginar um país diferente, é possível fazê-lo. Já houve quem o fizesse antes de nós, portanto não há nada que nos diga que não podemos fazê-lo. O que posso fazer aos jovens é um convite para trabalharmos para esse país, que pode ser diferente em tantas coisas essenciais, desde políticas de habitação que nos sirvam até serviços públicos de qualidade, passando por uma economia produtiva diversificada - e que, já agora, o faça dentro das regras ambientais. Não é muito justo dizer a um jovem que estamos a crescer muito numa atividade que é completamente insustentável do ponto de vista ambiental. O que é que vamos ter de mudar na agricultura e na indústria para podermos ter um país que se adapte aos 50 graus que aí vêm com o aquecimento global, ou que impeça, sequer, que cheguemos lá? Não vejo outra forma de dialogar com os jovens, sem paternalismos. Não devo dizer a ninguém o que fazer, mas posso querer debater em conjunto.
A UE é quase como o turismo: é inquestionável porque dá crescimento económico. Vamos ver se dá
O BE quer o país dentro ou fora do euro, da União Europeia (UE) e da NATO? Nos tempos da troika a Esquerda falava mais disto do que atualmente, em particular das questões europeias.
O BE nunca foi a favor da NATO. Sempre entendeu que a NATO já devia ter sido dissolvida, deixou de fazer sentido quando se destituíram os dois blocos do pós-guerra. Historicamente, a NATO é um instrumento de invasão, ataque e morte. Hoje estamos a ter esta conversa sobre a NATO e julgo que, há dois ou três anos, toda a gente concordaria, depois de ter visto o que a NATO fez no Iraque ou na ex-Jugoslávia. A NATO tem um passado de intervenções em vários países, nós não esquecemos esse passado simplesmente porque a situação mudou. O BE tem uma posição sobre a NATO e ela não se alterou. A UE é quase como o turismo: é inquestionável porque dá crescimento económico - vamos ver se dá -, não importa se é sustentável, se é justo, se a economia é diversificada e se os salários são bons. Não se questiona. O imobiliário também não se questiona, a UE também não. E nós vivemos em dogmas que limitam a nossa democracia e a nossa economia. Eu lembro-me de António Costa dizer que o euro foi um projeto que serviu a Alemanha... Temos hoje capacidade de análise para compreender o positivo e o negativo que tem uma integração europeia muito assimétrica, que tem impactos profundíssimos em Portugal e que, em larga medida, impede que o país desenvolva a sua capacidade produtiva. Quando a UE nos diz que não podemos ter indústria apoiada pelo Estado - que é a forma como todos os países do mundo têm indústria, o resto é uma ficção -, ou quando nos diz que temos de vender todas as empresas que são produtivas e lucrativas, está a determinar uma política económica. Quando impõe regras orçamentais que obrigam os países a definhar, ou uma austeridade como a que vimos, a UE está a impor uma política económica errada. E nós temos de dizer que ela é errada. É nesse campo que me encontro: o de defender outras políticas que acho que defendem o meu país.
Mas essa alternativa seria possível dentro da UE? Poderia haver uma solução híbrida?
A pergunta de "sim ou não" simplifica sempre questões políticas que são hipercomplexas.
Mas, no caso da UE, ou estamos ou não estamos.
Mais ou menos. Já vimos que a UE aplica diferentes regras a diferentes países. Tem, também, diferentes aplicações, diferentes poderes... Acho que também se criou uma ideia de que cada Governo que não quer fazer alguma coisa diz: "A UE não deixa". Em muitos casos, são os Governos que não querem fazer essa coisa e, depois, usam esse bode expiatório com muita facilidade. Aquilo que é possível dizer é que o BE tem um programa de medidas para defender o país, que são sufragadas e que terão apoio popular. Sempre, sempre que medidas apoiadas e sufragadas pelo meu país forem vetadas por um órgão não eleito, eu estarei ao lado da maioria democrática do meu país. Isto não é só uma posição de desacordo com as regras económicas da UE. É uma posição democrática, de defesa soberana da minha democracia. Não posso admitir, enquanto cidadã, que uma estrutura não eleita diga a um povo, que maioritariamente votou num programa, que esse programa não pode ser aplicado. Como digo, é um posicionamento democrático; não aceito que um poder alheio diga a uma maioria democrática o que pode ou não fazer. Isso seria assumir que vivemos na distopia e que já não vivemos em democracia. E eu não estou disposta a fazer isso. A UE tem demonstrado, ao longo dos últimos anos, que é um espaço não democrático. Agora, é sempre um espaço suscetível à relação de forças, e é sempre nessa relação de forças que nós jogamos. Por isso é que eu não posso dizer hoje o que é que vai acontecer numa relação de forças diferente. Eu sempre disse que, a cair, a UE cairia pelos seus próprios erros. Mas é sempre uma relação de forças. O que lhe posso dizer é a minha posição de princípio: entre o veto de um poder alheio não eleito e a vontade maioritariamente expressa pelo povo do meu país, eu escolho o meu país. Esse é o meu princípio.