A prevalência da obesidade infantil aumentou no pós-pandemia, e retomar a tendência de decréscimo que se tinha verificado de 2008 e 2019 é um desafio. Helena Real, secretária-geral da Associação Portuguesa de Nutrição, alerta para os efeitos da pandemia, do custo de vida e da baixa literacia alimentar.
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Atualmente, que fatores podem influenciar a evolução da obesidade infantil em Portugal?
Estamos muito expectantes para perceber se eventualmente vamos voltar àquilo que era a tendência de diminuição da obesidade infantil ou se porventura vamos manter ou quem sabe até aumentar. Os últimos dados tiveram uma forte influência da covid-19 e da mudança de hábitos, com mais tempo em casa. Depois disso, surgiram outras coisas, como o custo de vida e dos alimentos. Pode haver efeito, sobretudo quando há uma baixa literacia alimentar, que dificulta escolhas adequadas em tempos de adversidade, nomeadamente de aumento de preços.
Ainda assim, aquilo que muitas vezes se vê é que, normalmente, os pais procuram ter um cuidado primeiro com a alimentação dos filhos, e depois com eles. Por isso, às vezes as adversidades sentem-se mais na alimentação do adulto do que propriamente da criança.
Essa falta de literacia afeta a prevenção da doença?
Dizer que uma pessoa tem mais literacia alimentar é dizer que tem uma maior capacitação para fazer escolhas mais conscientes, informadas e adequadas às suas necessidades. Os estudos mostram que quando somos mais capacitados temos comportamentos mais adequados. Mas ainda temos pouca literacia. Trabalha-se muito a quantidade e a frequência de consumo, mas pouco o planeamento, seleção e preparação dos alimentos.
É preciso saber planear refeições - sejam elas ao longo dos dias, ao longo da semana, em função da sazonalidade e do próprio preço -, gerir o orçamento familiar, considerar o impacto ambiental e usar métodos de confeção mais saudáveis. Posso escolher os melhores alimentos, mas depois, no momento da preparação, escolher uma fritura ou os assados em detrimento daqueles que são os métodos mais protetores dos nutrientes, nomeadamente de base mediterrânica, aquilo que chamamos comida de panela, com uma base aquosa. Quando falamos da literacia alimentar, estamos a falar de todas estas componentes.
O acesso a determinados alimentos deve ser mais limitado?
O acesso aos alimentos interliga-se com o ambiente alimentar em que a criança se insere. Não há alimentos bons e maus, tudo faz parte da quantidade em que são consumidos. E é muito importante não negligenciarmos o ambiente alimentar nas nossas casas.
A criança pode estar muito bem protegida no ambiente escolar, mas depois chega à casa e tem mais acesso a alimentos de menor qualidade nutricional do que àqueles de maior qualidade nutricional, como a fruta, os iogurtes, o leite. Vamos imaginar que as crianças têm acesso a um conjunto muito alargado de alimentos com uma menor qualidade nutricional e os pais dizem, não podes comer, portanto, as crianças estão perante uma facilidade de acesso, mas têm que se controlar elas próprias.
Ou então temos aquilo que é o controlo encoberto: não há em casa ou aquilo que existe mais é aquilo que elas devem comer mais. Portanto, no fundo, estão a ser controladas, mas de forma encoberta. E isso tem um efeito mais positivo porque estamos a falar de crianças em idade escolar ou menor ainda, que não têm esta capacidade de autocontrolo ainda muito bem apurada. É importante trabalharmos este ambiente doméstico, e perguntar, 'o que é que lhes entra pelos olhos adentro?'.
O que falta fazer em contexto escolar?
O efeito escola é muito importante. Felizmente, temos, em Portugal, uma oferta alimentar em contexto escolar muito interessante, adequada às orientações e de um trabalho conjunto com os municípios.
Já há muitos anos que defendo a criação da figura do nutricionista escolar. Foi, aliás, criada uma orientação para o Governo criar esta figura, disponível para o agrupamento de escolas e para trabalhar uma série de questões, nomeadamente relacionadas com a educação alimentar. E defendo na íntegra também o que, infelizmente, não se vê ainda implementado de uma forma muito expressiva: uma ligação ao currículo escolar. As chamadas AEC, que existem ao final do dia normal letivo, podiam ser ocupadas por assuntos ligados à alimentação, de uma forma muito transversal porque a alimentação é vastíssima.
Ou seja, não só no contexto dos impactos na saúde, mas também de uma alimentação consciente e sustentável. Portanto, olho para essa possibilidade de uma forma holística, em que realmente tudo isto poderia ser trabalhado não só pelo nutricionista, mas também por outros profissionais. Desde já, produtores locais, que podem ter aqui um papel importante nesta vertente da chamada de atenção para a produção dos alimentos.