
Bairro da Torre, em Camarate
Leonardo Negrão / Global Imagens
Volvidos 27 anos da implementação do Programa Especial de Realojamento (PER), através do qual se pretendia erradicar bairros de barracas e realojar os seus moradores, ainda há milhares de famílias a viverem em condições precárias.
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Os dados mais recentes são de um levantamento feito pelo Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU), publicado em fevereiro 2018, mas está longe de ser um retrato fiel da realidade.
"O levantamento foi feito a ferros, muitos municípios numa fase inicial não responderam. Uns terão feito o levantamento em cima do joelho, pois faltaram dados. A gestão do parque de habitação social em Portugal é uma bandalheira", denuncia o ex-presidente do IHRU, Vítor Reis. A recolha destes números começou a ser feita em 2016 e foi a segunda realizada em Portugal.
É nos municípios da Amadora (2839), Almada (2735), Loures (2673) e Lisboa (2867) que se concentra um maior número de famílias por realojar. Oeiras foi o primeiro do país a acabar com o flagelo das barracas, tendo sido realojadas mais de 5000 famílias, avançou a autarquia ao JN. Cascais e Lisboa garantem também que já não têm bairros de barracas e que estes foram erradicados no final dos anos 90.
O levantamento do IHRU, feito com base em inquéritos a quase todos os municípios, identificou 25 762 famílias a precisarem de realojamento. Destas, 12 642 ainda vivem em construções precárias "de pedra, alvenaria ou tijolo". Só na Área Metropolitana de Lisboa, segundo o mesmo estudo, há 6280 famílias em barracas e construções precárias por realojar.
O JN foi ver como se vive em dois dos bairros de lata da Grande Lisboa, um em Loures, outro em Setúbal.
BAIRRO DA TORRE
Amor ilumina a falta de luz
É no meio de chapas de zinco, que voaram numa noite mais ventosa, e dos escombros de algumas barracas destruídas que Fábio e João descobrem todos os dias novas formas de brincar. Equilibram-se na bicicleta partilhada, balançam numa cadeira de plástico perdida no entulho, encaixam-se numa bacia, que servirá para muitos banhos, entram e saem de um carro pelas portas da frente num corrupio. Uma viatura que, por vezes, também serve de quarto a Josefina Barbeta, 37 anos, avó das crianças. É assim que se vive no Bairro da Torre, em Loures, a poucos quilómetros do aeroporto de Lisboa, e ocupado ilegalmente há cerca de 50 anos.
Na casa de Josefina Barbeta, erguida clandestinamente, o laranja dos tijolos é a única cor que se distingue no meio do cimento e da pedra. Numa divisão escura, "onde pinga água" durante todo o dia, formando poças, dormem cinco pessoas. "Ali mesmo, no chão, onde apertinhos cabemos todos", explica.
As casas só veem luz quando o poste de iluminação acende e conseguem fazer uma puxada. Durante o dia, e também porque a maioria das casas não tem janelas, andam às escuras. Para tomarem banho e cozinharem, alguns já conseguem obter água potável de forma ilegal, mas muitos têm de ir buscá-la a um caudal. Agora são 21, mas já foram 78 famílias. Nessa altura, tinham de partilhar água por mais pessoas e nem sempre chegava para todos.
"Em 2016, saíram 50 famílias. Quando o número de pessoas a viver aqui diminuiu, a água do caudal aumentou", recorda Ricardina Cuthbert, 45 anos. Veio de São Tomé e Príncipe, em 1998, ao encontro dos pais, que já moravam no Bairro da Torre desde o início da década de 90, e ali ficou até hoje.
A casa, uma das poucas com janelas no bairro, foi aumentando com o nascimento dos quatro filhos, com idades entre os 13 e os 20 anos. Um crescimento que se observa nos remendos fora e dentro da habitação precária. Entre consertos toscos e soluções improvisadas reinventam a vida, todos os dias. "Há pouco tempo forrámos o interior com madeira, porque entrava imensa água", explica.
Ricardina e o marido, Adérico Cuthbert, 47 anos, como outros moradores, agarram-se aos laços de vizinhança para suportarem a miséria. Garantem que aprenderam a ser felizes assim. "O nosso sonho era mantermos o bairro junto. Tenho medo de ir para um sítio onde não sou feliz", confessa Ricardina.
Um receio partilhado por Luís Barbeta, 22 anos, que partilha a casa com a mulher, os filhos, os pais e os avós. "Não queremos ir para bairros onde há muita confusão e o ambiente é mau para os nossos filhos. Quero que pelo menos sejam criados num sítio calmo", anseia.
QUINTA DA PARVOÍCE
Demolições não abatem sonhos
Desde há três anos que a pobreza levou cerca de 30 imigrantes a construírem casas junto ao já lotado bairro clandestino da Quinta da Parvoíce, em Setúbal, atrás do porto. Ao todo são mais de 150 pessoas, na sua maioria famílias angolanas com idosos e crianças, que vivem no bairro.
Sebastião Domingo, 40 anos, vive com o irmão numa casa de uma assoalhada, com chão acimentado, paredes em tijolo e telhado de fibra de vidro. Estava a construir outra para receber a mãe, mas os planos caíram por terra quando no final de fevereiro último, o IHRU demoliu a sua e mais cinco que estavam em construção para impedir o crescimento do bairro ilegal. "Não conseguia pagar um quarto e vim morar para aqui, não há eletricidade ou água, mas é seguro e todos cuidam de todos, há um sentimento de família", diz o angolano que chegou a Portugal há dois anos e a Setúbal no ano passado. Em Angola ficaram os três filhos que deseja ver em Portugal, mas numa casa com condições.
As hortas na encosta da Bela Vista, que antes alimentavam os moradores na Quinta da Parvoíce, foram substituídas por habitações ilegais. Depois da demolição de seis casas em construção, são 10 as que permanecem erguidas neste local, onde os perigos são evidentes.
Qualquer enxurrada põe em risco a segurança dos residentes, que têm que tomar cuidados extra com o lixo acumulado para evitar a presença de pragas como a dos ratos.
Eva Dão, 70 anos, mora com uma amiga numa casa na Quinta da Parvoíce e o seu filho estava a construir uma para a família na encosta. "Demoliram parte da casa e deixaram apenas um quarto, mas aqui não posso ficar". A angolana queixa-se principalmente da humidade e do frio, mas admira a capacidade dos moradores em fazer face às adversidades.
Jorge Pimenta, representante dos moradores da Quinta da Parvoíce, espera pelas respostas da Segurança Social e da Câmara de Setúbal para atribuição de casas e apoios. "Até lá, somos nós que tratamos do lixo, esgotos e tudo o que tiver que ser".
