“Partidos da Esquerda deixaram-se aprisionar por uma agenda que não lhes pertence”
Adalberto Campos Fernandes, ex-ministro da Saúde, na entrevista JN/TSF deste domingo.
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Adalberto Campos Fernandes, 66 anos, nasceu em Lisboa, é doutorado em Administração da Saúde, com mestrado e licenciatura em Saúde Pública, e tem repartido os últimos anos entre a Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade Nova e a Gestão da Saúde. Foi presidente do Conselho de Administração do Hospital de Santa Maria, em Lisboa, do Hospital de Cascais e também do SAMS, o Serviço de Assistência Médica dos Bancários. Integra grupos de reflexão na área da saúde e foi ministro da Saúde no primeiro Governo de António Costa.
A ministra da Saúde ainda tem condições para estar no cargo?
O juízo terá de ser feito sempre pela própria e pelo primeiro-ministro. Se os problemas da saúde em Portugal se resolvessem com as mudanças de ministro, já os tínhamos todos resolvidos há muito. Há uns anos, numa reunião europeia, alguém me dizia que a vida média de um ministro da Saúde na União Europeia eram 18 meses. E, portanto, creio que não é um problema exclusivamente nacional, é um problema europeu. É uma pasta muito difícil, muito exposta, onde a margem para errar é muito pequena e onde todos encontram no ministro um bode expiatório para justificar as falhas e as falências que o sistema possa ter, às vezes justamente, outras vezes injustamente.
Apontando a lupa às secretárias de Estado que perderam competências diretas para a ministra, tanto da IGAS como do INEM, entende que têm condições para continuar?
Digo o mesmo. Há aqui uma fragilidade política, que tem muito a ver com aquilo que for o resultado a seguir dos inquéritos. E há um pecado original, porque a IGAS devia estar sempre na tutela do ministro.
Podemos fazer uma comparação entre a atual perceção dos problemas da saúde e os que temos ao nível da segurança pública? Isto porque estamos a ter perceções negativas em ambos os casos.
Vejo isso como injusto e difícil. O populismo, independentemente da sua origem, alimenta-se das perceções. Manipula as perceções e é fortemente avesso aos factos. Repare, Portugal é hoje, em termos de PIB, a 44.ª economia do Mundo. E quando analisamos com atenção, a partir das diferentes fontes internacionais, os resultados em saúde, andamos entre o 12.º e o 20.º lugar. Há muito que Portugal desempenha melhor em saúde do que na própria economia. Isto não quer dizer que não existam problemas. Dou um exemplo concreto sobre o esforço que o Estado tem feito. Houve o chamado ministro da troika, que foi o doutor Paulo Macedo, e o ministro do pós-troika, que fui eu. Ambos tivemos o mesmo orçamento, cerca de nove mil milhões de euros. Hoje, estamos com 17 mil milhões de euros. E o último relatório posiciona Portugal, em termos de despesa total em saúde, acima da média da OCDE, apenas ultrapassado por países como Alemanha, Áustria ou Bélgica. Ora, não se trata então de uma falta de esforço do coletivo nacional, do povo, através da coleta fiscal, que manifestamente já atinge valores que estão acima da média, embora a despesa per capita seja mais baixa. Também a despesa privada é muito grande. Enquanto a média na Europa são 15%, a despesa direta das famílias em Portugal, para além de impostos, ultrapassa 30%, o que compara com países ricos de Norte da Europa.
Mas despesa não é sinal de eficiência…
Não, até indicia que há um problema de eficiência. Existem três a quatro milhões de portugueses que têm um subsistema ou um seguro de saúde. Podíamos, de uma forma muito simples, dizer que metade do país tem cuidados a mais e outra metade tem cuidados a menos. Um país que tem quase 40% de pobres é um país que, manifestamente, no contexto da União Europeia, é um dos mais pobres. Portanto, há aqui um desalinhamento entre a afetação de recursos, uma iniquidade entre regiões e grupos populacionais. Provavelmente, podendo até gastar o mesmo - porque já estamos em 17 mil milhões de euros e, se formos à despesa total, vamos aos 27 mil milhões - se tivéssemos melhor organização e melhor articulação entre os setores público, privado e social, podíamos fazer muito mais e melhor.
Olhando para o Orçamento, como tem visto a discussão? Não acha que o Partido Socialista foi um pouco encostado às cordas na questão do IRC?
Desde o primeiro minuto defendi que o PS não se devia ter envolvido neste regateio orçamental e que deveria, logo a seguir à eleição, ter afirmado que este não é o seu modelo político, não é o seu modelo estratégico, não é a sua visão do país e, portanto, que não valeria a pena estar a discutir linhas ou fragmentos da política orçamental, mas que, por uma questão de sentido de Estado e responsabilidade, tendo o povo escolhido uma maioria diferente, viabilizaria o Orçamento sem condições. Quando o Partido Socialista se envolve numa discussão, digamos, de detalhe, de linhas, às duas por três o que pensa a população? Bom, o Orçamento está aprovado e já não se percebe quem propôs o quê, nem a que propósito, e culminamos agora com esta situação que parece até relativamente curiosa do ponto de vista político, que é o Chega e o PS fazerem uma coligação para aumentar as pensões e o beneficiário líquido do ponto de vista político vir a ser o Governo, porque os pensionistas olham sempre para os aumentos.
Acha que o PS fica condicionado, ou seja, deixa de poder reivindicar o papel de líder da Oposição com o que ficar deste debate orçamental?
A política é um exercício de coerência, de frieza e, muitas vezes, de nervos de aço. Eu entendo que o PS perceba o sentimento de injustiça dos socialistas após ter sido interrompida uma maioria absoluta, um processo político em curso e a aplicação de um programa. Isso é um aspeto relativamente ao qual nós não temos nenhuma dúvida. Outra coisa é, com os dados e com os factos em cima da mesa, se o Partido Socialista não deveria ter tido uma posição de maior serenidade institucional, até porque os governos começam normalmente por ter problemas quando detêm o poder. Governar é muito mais difícil do que estar na Oposição, ao contrário do que se pensa. Apesar de aspetos positivos, estamos a ver que o Governo já tem, ao fim de oito meses, pontos de alguma fragilidade política, comunicacional, e, portanto, não há necessidade de ter mais olhos do que barriga, em termos de fazer oposição, e, sobretudo, de aceitar fazer oposição com parcerias e alianças espúrias que são muito difíceis de entender para quem defende a democracia ou faz parte, digamos, de uma força política que fundou a democracia.
Que avaliação faz da decisão, aparentemente concertada entre PS e PSD, de acabar com os cortes nos salários dos políticos?
Vejo-a como um tiro no pé. Se estivéssemos noutro contexto político, noutro tempo político, essa medida seria natural. Seria compreensível que os políticos não podem ser sacrificados, nem se pode continuar a degradar e diminuir tanto a função política. Sinceramente, acho que deveria ser feito para ser aplicado numa legislatura nova. E ainda tenho a esperança que seja esse o resultado da votação parlamentar. Ou seja, num quadro legislativo novo, nunca na presente legislatura, porque isso é, digamos, uma decisão em benefício próprio, essa é a perceção que a população vai ter. Dir-me-ão é ceder ao populismo. Mas não, é fazer a prevenção daquilo que o populismo vai fazer em termos de utilização demagógica desse tipo de medida.
Já que fala no populismo, a vitória de Trump nos EUA confirma uma certa tendência de aceitação da lógica radical de Direita. Não devia também a Esquerda abordar alguns temas que por vezes ficam num limbo e são agarrados pelos extremistas de Direita?
Os partidos da Esquerda democrática deixaram-se aprisionar por uma agenda que não lhes pertence. Tiveram medo que os movimentos à sua própria esquerda, que dinamizam e potenciam determinado tipo de causas e discursos, os pudessem comprometer em termos de implantação social. E abandonaram aquele território de uma certa maioria de pessoas que não tem envolvimento político, que vive preocupada com a segurança no seu bairro, com a questão dos filhos na escola. É uma tentação para o abismo, porque se não forem capazes de explicar às pessoas o seu pensamento sobre determinada matéria e de discutir tudo sem nenhum tipo de constrangimento, creio que continuaremos a ver o que vimos nos EUA, continuaremos a ver o que estamos a ver numa Europa em que apenas cinco governos têm uma orientação de centro-esquerda, continuaremos a ver a Alemanha num risco de ser tomada politicamente pela extrema-direita. Diria que continuaremos em direção ao abismo, porque tempos novos exigem atitudes novas.
A onda global de viragem mais à extrema-direita significa a falência da social-democracia ou dos quadros que neste momento estão à frente dos partidos sociais-democratas?
É mais complexo do que isso. Há uma transformação estrutural da sociedade que os partidos não estão, digamos, a conseguir entender. O que se passou nos EUA é paradigmático. Por exemplo, hoje temos um quadro de instabilidade na Europa muito sério e precisamos de posições muito claras, como sempre foi a história dos partidos democráticos em Portugal, relativamente ao alinhamento com o Eixo Atlântico, com os EUA, com o Reino Unido, com a NATO e mesmo em relação às questões do Médio Oriente. Não podemos ficar a meio da ponte. Ora, isto aproxima-nos mais dos partidos do centro, daquilo que eu chamaria dos partidos do arco da democracia tradicional liberal, do que dos partidos que, por defeito, entendem que a NATO não deve existir, que o Putin é um democrata ou que movimentos terroristas devem ser tolerados porque os meios justificam os fins. É nesse sentido que eu espero que os Estados Gerais que o secretário-geral do PS prometeu para o próximo ano sejam suficientemente amplos e abertos e tenham a qualidade dos Estados Gerais feitos pelo António Guterres antes de chegar a primeiro-ministro, para que essa discussão seja muito profunda e não baseada em “soundbites”. Deixe-me só dar um exemplo: não gostei de ver o PS dizer que o Governo ia privatizar o INEM, porque isto é verdadeiramente usar uma linguagem típica dos partidos que fazem da demagogia o seu principal modo de fazer política.
Já tivemos em Portugal ministros da Saúde, médicos, advogados, gestores, até professores, e agora temos uma ministra da área farmacêutica. Atendendo a que passou pela cadeira, quais são as melhores competências para ser ministro da Saúde?
É conhecer o sistema, é tê-lo estudado, isso ajuda muito do ponto de vista da compreensão dos problemas. Não vou pela ideia de que a licenciatura é essencial. Podemos ter um médico muito mal preparado, porque ser médico não é ser político. O que nós precisamos na Saúde é de um bom político, com uma belíssima formação técnica de base, com um bom conhecimento do setor e com uma capacidade de compreendê-lo. Dou-lhe um exemplo: o ministro da Educação alinha as características que defino para a escolha de um bom ministro.
Não lhe parece que este Governo fez uma gestão deficiente das expectativas? Prometeu um plano de ação para a saúde em 60 dias, e de facto apresentou-o, mas depois tivemos problemas no verão, agora com o INEM. E vem aí o inverno...
O plano de emergência foi uma ideia que, provavelmente, contribuiu para a vitória do PSD, porque as pessoas queriam alguém que lhes dissesse “os problemas vão ser resolvidos”. É verdade que a eficácia na implementação do plano ficou aquém do que se esperava. Havia margem para alguma tolerância relativamente às falhas do verão, que supostamente podiam ter transitado do Governo anterior. O resto já se torna muito difícil de compreender. Fiquei surpreendido até com a afirmação do diretor-executivo, ao dizer com uma enorme candura aos jornalistas que o inverno vai ser muito mau. Se o inverno vai ser muito mau e ele próprio assume isso, creio que temos aqui um problema talvez maior do que o da ministra da Saúde, com o INEM. Espero que tenha sido apenas uma afirmação de circunstância para baixar as expectativas, mas de facto o inverno é sempre mau, o Natal é sempre a 25 de dezembro e o pico das gripes e das doenças respiratórias ocorre sempre entre novembro e fevereiro.
Regressaria ao cargo se fosse convidado?
Acho que nunca se é feliz duas vezes no mesmo posto.
Foi feliz, portanto.
Fui. Tive pena de não ter tido mais tempo. Tinha uma equipa extraordinária, um excelente secretário de Estado Adjunto, o professor Fernando Araújo. Acho que fizemos aquilo que era possível. Agora, o que gostaria enquanto cidadão era de ajudar a que os ministros que vão por lá passando, independentemente do partido, possam fazer bem a este ativo tão importante da democracia portuguesa que é o Serviço Nacional de Saúde. E é isso que desejo, seja do PSD ou do PS, que tenham sucesso e sorte para levar a bom porto as políticas públicas da Saúde.
*Ouça a entrevista completa este domingo ao meio-dia na TSF