Foi o primeiro-ministro demissionário António Costa que fez saber o convite a Mário Centeno para chefiar o Governo e, assim, evitar a dissolução do Parlamento. Esse convite continua a dar que falar, com o presidente da República a ter necessidade de dar esclarecimentos ao país na madrugada desta segunda-feira.
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Como surgiu o convite a Mário Centeno para liderar o Governo de maioria socialista?
O PS, na tentativa de evitar a dissolução do Parlamento, a realização de eleições legislativas antecipadas e a perda da maioria absoluta, defendeu a substituição do demissionário António Costa por um senador socialista, quando foi recebido pelo presidente da República na quarta-feira passada (dia 8 de novembro). Mas foi o primeiro-ministro, à entrada para a reunião da Comissão Política Nacional na noite de quinta-feira (dia 9), que revelou ter convidado Mário Centeno, simpatizante socialista, ex-ministro das Finanças do PS e atual governador do Banco de Portugal, para liderar o Governo, após a sua demissão. "O PS, como referencial de estabilidade no país, competia-lhe apresentar uma solução alternativa que permitisse poupar ao país meses de paralisação até às eleições, passando pela indicação de uma personalidade de forte experiência governativa, respeitado e admirado pelos portugueses, com forte prestígio internacional: o professor Mário Centeno", especificou Costa. No entanto, a solução de Marcelo Rebelo de Sousa foi outra: "O presidente da República entendeu que, melhor do que uma solução estável, com um Governo forte e de qualidade renovada, sob a liderança do professor Mário Centeno, a opção era a realização de eleições".
Marcelo Rebelo de Sousa sabia do convite de António Costa a Centeno?
Sim. Na declaração ao país, feita no sábado (dia 11) à noite da residência oficial em São Bento, o primeiro-ministro demissionário garantiu que o convite ao atual governador do Banco de Portugal para chefiar o Governo socialista foi feito "com o conhecimento" de Marcelo Rebelo de Sousa. Ou seja, de acordo com o primeiro-ministro, que justificou a escolha de Centeno por reunir três condições essenciais: “sólida experiência governativa”, “admiração dos portugueses” e “reconhecimento e credibilidade internacional”, o convite ao atual governador do Banco de Portugal foi precedido de uma conversa com o chefe de Estado.
"Vi a necessidade de encontrar alternativas à dissolução da Assembleia da República. Por isso, falei com o senhor presidente da República e agi, com o conhecimento, do presidente da República. Quando apresentei a proposta, sabia que o professor Mário Centeno só daria uma resposta definitiva, naturalmente, depois de falar com o Presidente da República e depois de conhecer as condições de governabilidade que tinha. É sabido que o presidente da República fez outra opção. Portanto, essas conversas não prosseguiram e não houve resposta definitiva do professor Mário Centeno", esclareceu António Costa, na resposta aos jornalistas após a declaração em S. Bento, reconhecendo a importância de ter, na liderança do Governo nacional, uma figura de credibilidade internacional, tendo em conta que ele próprio sairá do Executivo por estar a ser associado a uma investigação por corrupção.
Como foi recebida a notícia do convite a Centeno pelos partidos políticos?
Só o PS - e sem surpresa - aplaudiu a escolha. A generalidade dos partidos da Oposição com assento parlamentar condenou essa opção, considerando que coloca em causa a independência de Mário Centeno face ao Governo enquanto supervisor bancário e conselheiro do Banco Central Europeu e alguns partidos, como o Chega, entendem que o atual governador do Banco de Portugal deve deixar o cargo. Aliás, André Ventura quer chamar Centeno ao Parlamento para dar explicações.
O líder parlamentar do PSD, Joaquim Miranda Sarmento, vê nesse convite "mais uma demonstração desta bastante grave da falta de independência que o governador do Banco de Portugal tem. Sempre dissemos que não era independente do poder político. O que vemos é que a teia socialista, que procura ocupar todos os espaços do Estado e do setor público, que tem sempre os mesmos protagonistas, as mesmas práticas e os mesmos resultados, também já se estendeu ao Banco de Portugal. E lamentamos profundamente que esta indicação tenha sido feita. Mostra bem que o governador é um agente político, não tem independência. Antes de ser governador e até antes de ser ministro das Finanças, é funcionário do Banco de Portugal e deve ter a preocupação de preservar a instituição à qual pertence há mais de 20 anos”, sublinhou o social-democrata.
Perante as críticas, Mário Centeno manteve-se em silêncio. Só o quebrou em declarações ao jornal Financial Times no domingo (dia 12), depois de ter sido divulgado que a comissão de ética do Banco de Portugal vai avaliar a conduta do governador para ver se existe um conflito de interesses ou incompatibilidades com as funções que exerce. A reunião terá lugar esta segunda-feira (dia 13).
O que disse Mário Centeno ao "Financial Times"?
Mário Centeno confirmou o convite do primeiro ministro António Costa, mas foi mais longe. Declarou que o convite foi também do presidente da República e essa afirmação motivou um desmentido madrugador de Marcelo Rebelo de Sousa, que, à 1 da manhã de segunda-feira (dia13), negou ter convidado "quem quer que seja" nem autorizou que o fizessem em seu nome num comunicado, publicado na página de internet da Presidência da República.
"Eu recebi um convite do presidente e do primeiro-ministro para refletir sobre a possibilidade de liderar o Governo. Eu estava muito longe de chegar a uma decisão", declarou ao jornal Financial Times.
Marcelo sabia, mas não deu anuência ao convite a Centeno?
Sim, as posições públicas de António Costa e de Marcelo Rebelo de Sousa dão a entender que o presidente da República foi informado do convite a Mário Centeno para chefiar o Governo socialista, contudo essa opção não partiu do chefe do Estado nem o convite foi autorizado por ele. Por isso, tendo conhecimento das declarações do atual governador de Portugal ao Financial Times, entendeu que tinha de esclarecer o caso e desmentir a informação veiculada por Centeno. E fê-lo através de um comunicado, publicado esta segunda-feira de madrugada na página de internet da Presidência da República.
"O presidente da República desmente que tenha convidado quem quer que seja, nomeadamente o governador do Banco de Portugal, para chefiar o Governo. (...) Mais desmente que tenha autorizado quem quer que seja a contactar seja quem for para tal efeito, incluindo o governador do Banco de Portugal".
Afinal, Centeno não foi convidado pelo presidente da República? Governador retifica
Não foi preciso esperar muito para houvesse uma reação de Mário Centeno ao desmentido do presidente da República. Ao início da manhã de segunda-feira, o governador do Banco de Portugal corrigiu as suas próprias declarações através de um comunicado, publicado na página de internet daquele organismo.
O antigo ministro das Finanças socialista sublinha que "é inequívoco que o senhor presidente da República não me convidou para chefiar o Governo". No entanto, assinala que António Costa o contactou para "refletir sobre as condições que poderiam permitir que assumisse o cargo de primeiro-ministro" e que o "convite para essa reflexão resultou das conversas que o senhor primeiro-ministro teve com o senhor presidente da República". E, "num exercício de cidadania", Centeno aceitou refletir.
"Nunca houve uma aceitação do cargo, mas apenas uma concordância em continuar a reflexão e finalizá-la em função da decisão que o senhor presidente da República tomaria", esclareceu ainda.
É a primeira vez que Mário Centeno é envolvido em polémicas políticas?
Não. A nomeação de Mário Centeno para o cargo de governador do Banco de Portugal gerou grande polémica, com os partidos da Oposição, em particular o PSD, a apontarem o dedo para um eventual conflito de interesses. Então, os sociais-democratas questionaram a indepedência do economista e o conflito de interesses da passagem direta de Centeno do Ministério das Finanças para o Banco de Portugal.
"Entendemos que não preenche as condições para exercer com independência e credibilidade as funções de governador do Banco de Portugal", declarou, à data, o social-democrata Duarte Pacheco. Nessa altura, o deputado único da Iniciativa Liberal (IL), João Cotrim Figueiredo, chegou a interpor uma providência cautelar, para que fosse impedida a nomeação de Centeno antes da conclusão do processo legislativo parlamentar sobre o tema. Contudo, o Supremo Tribunal Administrativo rejeitou a providência cautelar, justificando tratar-se de um “ato político”. No Parlamento, defendendo a sua nomeação para o cargo de governador do Banco de Portugal, Mário Centeno Centeno declarou-se “qualificado, motivado e apoiado nestas funções”.
"Se eu usasse o seu raciocínio [referindo aos conflitos de interesses apontados pelos deputados do PSD] não conseguia encontrar emprego em Portugal nas próximas décadas. (...) O Banco de Portugal não pode viver numa torre de marfim. Não é supranacional, responde perante o Parlamento”, sublinhou, na audição parlamentar que antecedeu a sua nomeação para o cargo de governador do Banco de Portugal, a 10 de julho de 2020.
Recorde-se que Mário Centeno, embora seja independente, é visto claramente com um ativo socialista, como comprova o convite de António Costa. Centeno foi ministro das Finanças de António Costa entre 26 de novembro de 2015 e 15 de junho de 2020. Sucedeu-lhe João Leão. E, agora, o cargo é tutelado por Fernando Medina. Como governador do Banco de Portugal, Centeno sucedeu a Carlos Costa, cujo mandato à frente que ocupou o cargo desde 2010.