Paulo Raimundo: "O confronto político entre vários intervenientes teve como ponto alto uma invasão russa"
Secretário-geral do PCP afina discurso em relação à guerra e traça metas para a liderança.
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Numa nuance que admite não ser semântica, o novo secretário-geral do PCP usa claramente o termo "invasão" para abordar a guerra na Ucrânia - sem deixar de insistir na responsabilidade partilhada de vários países nessa invasão. Consciente de que o caminho de afirmação da sua liderança é longo, Paulo Raimundo assegura não haver nenhuma obsessão em "tornar rapidamente um desconhecido em conhecido". O seu palco será a ação no terreno, admitindo faltar uma maior ligação do PCP à realidade local.
Assim que o seu nome foi anunciado todos o descreveram como um desconhecido. A forma ativa como tem estado no espaço mediático é uma necessidade de contrariar essa descrição?
É aproveitar uma oportunidade que se passou a abrir não tanto para me dar a conhecer a mim próprio, mas a perspetiva do PCP sobre a situação em que estamos e as propostas para resolver essa mesma situação.
Não estar no Parlamento é uma desvantagem? Qual vai ser o seu palco para se afirmar como rosto de oposição?
Não estar na Assembleia cria uma dificuldade objetiva, que é não estar nesse importante espaço de debate e de luta política. Apesar de termos um grupo parlamentar mais reduzido do que gostaríamos e achamos que o povo precisava, estou muito descansado com os seis deputados de enormíssima qualidade que temos, e com o seu esforço e empenho. Não podendo estar nessa frente, estarei noutras. Estamos a fazer um caminho longo, como sabem somos um partido com mais de 100 anos e paciência é coisa que não nos falta, e estaremos onde é necessário estar, nas ações do partido, nas empresas e locais de trabalho.... Vou estar na próxima terça-feira com comissões de utentes de Saúde do Barreiro, é a dinâmica normal e que queremos intensificar, sem nenhuma obsessão de tornar rapidamente um desconhecido em conhecido.
Como encara a crescente desvinculação sindical e a criação de movimentos inorgânicos?
Não acompanho essa ideia catastrófica que é anunciada sobre o movimento sindical, nem de que não se tenha adaptado às novas realidades. Admito que o próprio movimento sindical não esteja satisfeito com aquilo que consegue alcançar e com a capacidade de mobilização, mas não acompanho a ideia de que há uma crise profunda.
Não será profunda, mas há dados estatísticos que são claros.
É uma evidência. Desde logo, a realidade social do nosso país apela a tudo menos a grandes agregações. Qual é a consequência da precariedade? Sindicalizar alguém que hoje está no setor da alimentação, amanhã está na hotelaria e no outro dia está nas plataformas de distribuição de comida não é fácil. É neste quadro de alterações profundas de relações laborais que o movimento sindical se está a adaptar. De qualquer das maneiras, não diabolizo movimentações de trabalhadores fora deste âmbito sindical. São realidades com as quais o movimento sindical tem de viver e vive bem.
Tem apenas 46 anos, mas assegurou que não se sente uma lufada de ar fresco para o partido. O PCP tem dificuldade em encontrar novidade além do habitual discurso formatado?
Todos os dias temos lufadas de ar fresco no PCP. Tivemos uma conferência que foi uma lufada de ar fresco do ponto de vista até das nossas preocupações. Uma das linhas prioritárias de intervenção política a que decidimos dar mais estruturação é a preocupação com as crianças e os pais. A sociedade vai mudando e nós procurarmos adaptar-nos a estas novas exigências.
Disse esta semana que o partido tem tudo "muito organizadinho" mas as estruturas revelam "desligação ao meio" em que estão inseridas. O que vai fazer para melhorar essa ligação?
Não é o partido todo, são algumas organizações. Vou dar um exemplo concreto: uma freguesia com um centro de saúde que não tem médico de família ou que está prestes a encerrar. Qual é o papel dessa sua organização local? É fazer tudo o que são tarefas do partido, mas não pode passar ao lado desse problema. Os militantes do partido têm de ter um papel de agitadores e de mobilizar outros.
O partido perdeu capacidade de ligação por falta de pessoas ou por falta de energia nessa mobilização?
As tarefas que decidimos para o partido são sempre maiores do que a gente que há para as cumprir. Não quer dizer que desvalorize o esforço imenso dos militantes do meu partido, pelo contrário, um esforço imenso e uma dedicação imensa. É claro que a situação social e económica exige que demos mais passos nesse sentido.
Já justificou os salários pagos pelo partido, na ordem dos 750 euros por mês, explicando o objetivo de estarem alinhados com a realidade e as dificuldades dos portugueses. Não deveriam promover, pelo contrário, a política de valorização dos trabalhadores que defendem?
Compreendo a pergunta e uma aparente contradição, é um bocado o "faz o que eu digo, não faças o que eu faço". Não é nada disso. A questão é mais profunda e até ideológica. No nosso país 75% dos trabalhadores ganham menos de mil euros e temos 2,1 milhões que ganham 800 ou menos por mês. A opção é como nós, funcionários do partido, estamos inseridos nessa realidade. Quanto mais depressa for a evolução salarial dos portugueses, que é uma questão central, mais depressa será a evolução salarial dos funcionários do PCP.
Qual vai ser a prioridade número um do PCP na discussão final do Orçamento e no combate parlamentar?
Apresentámos mais de 400 propostas para a fase na especialidade, que correspondem às frentes prioritárias que colocamos face à situação do país, desde logo propostas na área da habitação. Há, entre outras, três propostas fundamentais: o não aumento das rendas acima dos 0,43%; um spread máximo de 0,25 para a Caixa Geral de Depósitos (não sendo possível o Estado decidir para os outros, é um sinal importantíssimo para o conjunto da banca); e uma coisa que tem particular interesse face ao aumento dos juros: não há nenhuma justificação para que se mantenha as comissões criadas enquanto os juros estiveram muito baixos.
É a prioridade antes até do aumento das pensões?
Não, não. Estava a dar um exemplo de um pacote de medidas. Há outro conjunto de questões nas áreas sociais, que são questões obviamente laborais, mas também a das pensões. Apresentámos uma proposta de aumento mínimo de 50 euros nas pensões. Uma outra frente, que não é pouco importante no momento em que vivemos, é toda um conjunto de propostas sobre o custo de vida. Quando dizemos que é preciso fixar os preços e criar um cabaz alimentar, isto tem consequências nos lucros das grandes distribuidoras e dos grandes retalhistas.
A crise tem razões externas que muito parecem penalizar o PCP, devido às explicações sobre a guerra na Ucrânia. Admite que esta seja a maior causa de desgaste do partido nos últimos anos?
Não. Compreendo a pergunta, acho que ela tem interesse jornalístico...
Acha que é uma questão de semântica dizer intervenção militar ou invasão e que é a mesma coisa?
Não. Sem fugir à pergunta, queria voltar a uma questão. Estamos a viver muitas guerras por esse Mundo fora. E compreendo, é natural, temos uma guerra à porta e, até pelo impacto mediático, ganha uma dimensão, mas esta guerra do ponto de vista da sua conceção, das suas consequências humanas, dos mortos, dos refugiados, da destruição, é uma guerra que tem consequências na Ucrânia semelhantes às que existem no Iémen ou na Síria, em vários pontos do mundo. Ou seja, não desvalorizemos o problema que é a guerra. Para nós, não há nenhuma ambiguidade. Há uma guerra.
Ainda esta semana, Arménio Carlos disse que lhe custa ver o PCP "queimar-se em lume branco" por não responder diretamente à questão sobre se houve ou não uma invasão da Ucrânia. Houve?
Vou responder, não vou fugir à pergunta. A questão aqui é se olhamos para aquele ato de 24 de fevereiro como um ato isolado ou se olhamos como um conjunto numa escalada profunda de guerra. É que isto não é pouco importante. O esforço do PCP, que queremos que seja o esforço da maioria da população, é encontrar caminhos para a paz, porque não há guerras justas. Nem há uns muito maus e outros muito bons. É uma guerra. É preciso acabar com ela rapidamente. Aliás, nunca devia de ter começado. Mas para os caminhos para a paz é preciso encontrar quem são os intervenientes na guerra. Há um que é óbvio, a Rússia. Não há como fugir a isso. Nem é possível. Aliás, tivemos a oportunidade de condenar de uma forma muito clara a intervenção militar russa. E depois tem mais três intervenientes: os EUA, a NATO e a UE. No meio disto tudo quem é que está a sofrer em primeiro lugar? O povo ucraniano, depois o povo russo e depois todos os povos que são alvo do efeito boomerang das sanções que estão em curso. Mas não fugindo à pergunta, se me disser assim: os acontecimentos com os quais nos confrontamos hoje começaram no dia 24 de fevereiro com a invasão russa, não acompanhamos essa reflexão. Se me disser que os acontecimentos a 24 de fevereiro decorrem de uma escalada militar, de confronto político entre vários intervenientes e que teve como ponto alto uma intervenção e uma invasão russa no território ucraniano, eu vou dizer, sim senhor, estamos de acordo.
Mas nesse ponto legitima a invasão?
Não. Talvez mais um equívoco. Não é possível, penso eu, ler em nenhum comunicado, nenhuma decisão, nenhuma afirmação do PCP alguma legitimação da intervenção militar.
Quando usa, por exemplo, a imagem do cão atiçado dizendo que a culpa não é do cão, está a legitimar a reação.
Não, não! Estava só a dizer que a culpa não é só do cão. Talvez a passagem da entrevista não tenha sido exatamente como foi dada, porque eu referi "a culpa não é só do cão" e isso não está a legitimar nada. Não é estar a dizer "tiveram razões para". Não é isso. Se deixarmos de ter em conta que há este enquadramento geral e que os intervenientes nesta guerra estão para lá da Rússia e da Ucrânia, nunca vamos conseguir encontrar os caminhos da paz.
Se o PCP fosse hoje às urnas, seria penalizado pela ambiguidade que se instalou quanto a esta posição?
Não consigo dizer que se fossemos às urnas hoje teríamos este ou aquele resultado. Acho que isso é impossível. Até se quisermos ir a sondagens, há para todos os gostos. No que diz respeito aos problemas concretos das pessoas, aos salários, as pensões, salvar o SNS, todo o conjunto dos problemas concretos com que as pessoas se deparam, o PCP está lá e as pessoas, independentemente das opiniões diferentes, reconhecem no PCP uma ligação ao concreto que é o que interessa no fim do dia às pessoas.
Qual é o objetivo nas próximas disputas eleitorais? Travar a evidente erosão de eleitores nos últimos anos já seria um bom resultado?
Já ando há alguns anos nesta vida. E eu ainda sou do tempo em que o PCP vinha de resultados eleitorais negativos e subiu. Isso foi assim nas eleições autárquicas, nas legislativas, no Parlamento Europeu...
Começou a conhecer uma queda a partir do momento em que há um acordo parlamentar. Admite que a chamada "geringonça" produziu um único vencedor e dois derrotados, o PCP um deles?
Eu já lá vou, não vou fugir à questão. Sou do tempo em que vínhamos de resultados eleitorais negativos e subimos, e depois voltámos a descer. Não há nada que nos garanta que o resultado agora seja sempre a descer. Pelo contrário, estamos muito otimistas e disponíveis para essa batalha, e de cabeça erguida. É um facto objetivo que, desde 2015 para cá, no conjunto das eleições que disputámos os resultados têm sido sempre a descer.
Disse que o PS, com maioria absoluta, tende a autodestruir-se. Acredita que este Governo não vai chegar ao fim da legislatura?
O que o Governo tem e fazer, e tem todos os instrumentos para o fazer, só não faz se não o quiser, é encontrar as repostas necessárias para os problemas que o país enfrenta. E aquilo a que temos assistido nestes meses de maioria absoluta é que tem funcionado ao contrário. E é bom que o PS tenha a consciência, e penso que tem, que o facto de ter uma maioria absoluta não lhe garante por si só a estabilidade necessária para levar por diante todos e quaisquer objetivos que tenha. Não há nenhuma situação formal que permita vislumbrar essa situação, mas a vida política é muito dinâmica.
E como vê o papel do presidente da República nesse cenário dinâmico?
Acho que o presidente da República tem procurado exercer, independentemente das divergências políticas que evidentemente temos, o seu mandato dentro dos objetivos e dos equilíbrios que considera serem úteis. Há quem caracterize como de sucessivos favores ao Governo e até de estar com o Governo nas mãos...
E o novo secretário-geral do PCP como é que caracteriza?
Quem tem um Governo nas mãos, fará dele o que entender em cada um dos momentos.
Mas está a dizer que o presidente tem o Governo nas mãos?
Não, não. Eu estou dizer que há quem caracterize assim. Acho que o presidente da República tem procurado cumprir as obrigações constitucionais que lhe estão consagradas e, num estilo muito próprio, que às vezes até pode criar um certo embaraço... Há um funcionamento regular, que acho que é obrigatório, de princípio, para as instituições que se relacionam.
Com as polémicas, os sucessivos casos, o ambiente de alguma falta de credibilidade de alguns elementos do Governo, a defesa da estabilidade poderá justificar uma dissolução do Parlamento?
Vemos o que foi intitulado de "casos e casinhos" com muita preocupação. Até diria mais, preocupação que está para lá do caso A, do caso B ou do caso C. O conjunto sucessivo destes casos, que devem ser rapidamente investigados e julgados e, se houver razões para isso, devem ser retiradas as consequências, também judiciais se for caso, devem ser rapidamente resolvidos, porque todo este conjunto de casos cria um lamaçal e um profundo descrédito até da vida política e do regime democrático. E geralmente isto não dá bons resultados. Da nossa parte, não alimentaremos estas polémicas mas também não nos vamos inibir de dizer o que achamos sobre a matéria. Mas vemos com muita preocupação, desde logo os casos acontecerem, mas também esta sucessão, esta descredibilidade total das instituições, da ação política, toda esta ideia de lamaçal em que são todos iguais, andam cá todos para se abotoarem, é muito perigosa.
Ouça a entrevista completa este domingo ao meio-dia na TSF