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A gestão dos monumentos nacionais não pode ser fragmentada e é preciso aumentar a capacidade de gerar receitas. As duas premissas explicam a lógica de reorganização da gestão de museus e monumentos, à qual se seguirão medidas para aumentar a participação de privados no setor. Alheio às críticas de esvaziamento das CCDR, o ministro da Cultura promete que estas terão muito trabalho e peso e analisa o futuro de alguns equipamentos à luz da lógica territorial. Como a Casa da Música, que tem de levar mais gente para dentro dos seus muros de betão.
Quando se esperava a transferência da gestão de monumentos para as CCDR, a reforma anunciada recentraliza e volta a gerir a partir de Lisboa o que estava regionalizado. É uma opção que contraria o discurso político e o programa do Governo?
Essa pergunta tem tantos equívocos que é difícil responder sem antes dizer alguma coisa sobre aquilo que está na pergunta. O que está em causa, antes de tudo, é uma reorganização da Direção-Geral do Património Cultural, que vai ser extinta no final deste ano e dar lugar a duas novas instituições, em particular uma empresa pública para gerir os museus e os monumentos nacionais - e sublinho os nacionais. Grande parte eram geridos diretamente pela Direção-Geral do Património.
Outros eram geridos pelas direções regionais.
Poucos, muito poucos.
Mas tínhamos monumentos dirigidos regionalmente que vão passar a ser dirigidos no plano nacional.
Vamos é criar condições para que os museus e os monumentos sejam dirigidos pelos diretores, que eles tenham capacidade de os dirigir no território onde se encontram, de tomar opções sobre a sua programação plurianual, de mobilizar recursos do território para investir nesses próprios equipamentos. Essa é que é a prioridade. Podemos colocar o foco em quem é que tem mais ou menos poder, mas acho essa discussão bastante estéril. O importante é perceber como é que o Museu Soares dos Reis, no Porto, ou o Machado de Castro, em Coimbra, ou o Convento de Cristo, em Tomar, ou Alcobaça, ou Batalha, têm efetivamente condições para serem geridos pelos seus diretores. E todos esses equipamentos já eram geridos pela Direção-Geral do Património, então vamos criar uma estrutura muito mais ágil para gerir.
O que vai acontecer aos monumentos cuja gestão as autarquias se recusem a assumir?
Estamos a falar de muito poucos equipamentos. A EPE tem 31 equipamentos. Desses 31, só seis é que não eram geridos pela Direção-Geral do Património. Mas, além disso, acrescentámos uns quantos à descentralização que, se houver entendimento e compromisso com as autarquias, passaremos a gestão. Se não houver, ficarão na EPE. Não há aqui nenhuma decisão administrativa de impor aos municípios o que quer que seja. Por exemplo, a Câmara Municipal do Porto está interessada em que o antigo Museu de Etnologia, o Palácio de São João Novo, passe para a Câmara. Há outras câmaras que não estão interessadas, as coisas manter-se-ão como até aqui, não vem mal ao Mundo.
A esmagadora maioria dos monumentos que vão integrar a futura empresa pública está nos grandes centros urbanos. São os mais visitados e com mais receitas. Não considera, precisamente, que está a contribuir para a litoralização cultural, como acusam alguns autarcas?
Infelizmente, há um grande caminho a percorrer para que os principais museus e monumentos nacionais deem lucro. É precisamente isso que nós queremos, é gerar mais recursos para investir nos equipamentos. Depois, há outro problema: os museus com coleções nacionais e os monumentos que são património mundial estão onde estão. Não temos como resolver esse problema. E nem sequer estão todos em Lisboa. O Convento de Cristo não é em Lisboa, o Mosteiro de Alcobaça não é em Lisboa, o Mosteiro de Santa Maria da Vitória não é em Lisboa, é na Batalha, Conímbriga é em Conímbriga, quer dizer, há muitos casos que não estão em Lisboa. E quando falamos destes museus que têm tesouros nacionais, coleções nacionais, ou que são património mundial, eles estão classificados como tal. E um bem considera-se de interesse nacional quando a respetiva proteção e valorização representa um valor cultural de significado para a nação. Ora, se é para a nação, é para o conjunto do país e, portanto, não pode ser municipalizado. Da mesma forma, quando é património mundial, temos responsabilidades perante a UNESCO.
Qual a razão para as CCDR ficarem tão esvaziadas na área da Cultura, praticamente só com licenciamento administrativo de obras?
Isso corresponde aí a 90% do trabalho das direções regionais da Cultura. E, portanto, não é verdade que haja um esvaziamento. Como eu disse, há seis museus e monumentos que estavam nas CCDR e que passarão para esta empresa pública. Foi mesmo cometido um erro há dez anos, quando foi feita a reorganização do património e a criação da Direção-Geral do Património. E foi cometido um erro também na forma como se distribuiu património sem critério pelo território. E eu pergunto-me se a ideia é fragmentar a gestão daquilo que são os principais museus nacionais e os que são património da humanidade. A minha resposta é não. Acho que o território ganha mesmo se houver uma comunicação conjunta para os visitantes destes museus, se houver uma estratégia de investimento conjunta, se houver uma revisão e uma reflexão sobre a bilhética, se houver capacidade de fazer aquisições para as coleções, coisa que não tem acontecido. Os museus que não fazem aquisições são museus mortos.
Como é que um governante de Esquerda propõe uma lógica empresarial para os museus?
Não vejo nenhuma contradição em ser de Esquerda ou de centro-esquerda e ter uma gestão empresarial. Não podemos ter é museus geridos numa direção-geral. Isso limita a capacidade e a agilidade da gestão de cada um dos museus, limita a capacidade de atrair os privados, limita a capacidade de programar plurianualmente, a qualificação dos recursos humanos, tudo isso está limitado pelo modelo que temos. E quando escolhemos um modelo empresarial, não é certamente para gerar lucros e distribuir dividendos. É para ter mais recursos para investir.
Os apelos ao mecenato das empresas têm sido frequentes.
Sempre disse que tinha esta primeira etapa, que era fazer a reorganização, que teve aqui um modelo bastante ousado e ambicioso e que não era aquele que as pessoas esperavam sequer. O segundo passo é criar um ambiente mais favorável para o investimento em cultura, que não se limita apenas ao mecenato. Há um lado que é uma responsabilidade do Estado, mas há um outro que é também uma pedagogia que há a fazer sobre a participação dos privados na cultura. Nós comparamos mesmo muito mal nessa perspetiva e precisamos de trazer os privados para a cultura. Acho que isso valoriza, por um lado, a cultura, porque são mais recursos, mas também a própria identidade corporativa de quem se envolve na cultura.
Foram abertos concursos para conservação e restauro. Qual é a resposta que tem havido?
A leitura e o diagnóstico que faço até agora, com um pouco mais de um ano de mandato, é que esta dimensão do património, da conservação e do restauro precisa de ter uma prioridade distinta daquela que teve no passado. Na empresa Museus e Monumentos de Portugal, vamos colocar o Laboratório José Figueiredo, que tem um papel ímpar na conservação e restauro, é um centro de excelência, mas com recursos humanos muito envelhecidos. Abrimos dois concursos, 20 para irem trabalhar para o Laboratório José Figueiredo e 20 outros para serem distribuídos pelo conjunto dos museus e dos monumentos. O primeiro concurso já está muito avançado. A procura foi muitíssima. Conto que ainda em 2023 esses primeiros 20 entrem ao trabalho no laboratório.
Nas verbas iniciais do PRR, houve críticas por estarem canalizadas, na sua esmagadora maioria, para equipamentos e infraestruturas na Área Metropolitana de Lisboa. Houve, por esta via, um acentuar de assimetrias? E como estão os níveis de execução?
Primeiro, as CCDR, a partir de janeiro, terão mesmo muitas responsabilidades na Cultura e um enorme volume de trabalho. E julgo que há muitas outras dimensões em que as CCDR se devem envolver e devem estar ativas naquilo que tem a ver com a estratégia cultural. Tenho falado sobre esse tema quer com a minha colega, a ministra da Coesão, quer com os presidentes das CCDR. Teremos uma nova reunião, aliás, esta semana. Há outros desafios que se colocam às CCDR no que tem a ver com a densificação da atividade cultural e artística no território, com a correção de assimetrias dentro de cada região e muitas outras dimensões. Quanto ao PRR, foi uma oportunidade muito significativa para investimento no património e na cultura. Permitiu fazer investimentos nos monumentos nacionais, mas também compensar o facto de algumas regiões do país, nomeadamente Lisboa e Vale do Tejo, nos últimos períodos de programação não terem tido verbas para o investimento no património. O Teatro Nacional de São Carlos, que é dos investimentos mais pesados financeiramente no património, não tem uma intervenção há décadas e é o único teatro de ópera que temos no país.
E quanto aos níveis de execução?
Estão em linha com o que se esperava e com o que estava planeado. Ainda esta sexta-feira tive a oportunidade de estar em Mafra, um concelho que vai ter um investimento muito significativo no PRR, no Palácio Nacional de Mafra, a transferência do Museu Nacional da Música e, ao mesmo tempo, a construção do Arquivo Nacional do Som, um desejo há muito tempo. São 18 milhões de euros este conjunto. A obra do Museu Nacional da Música arranca para a semana, da mesma forma que a obra do Teatro Nacional D. Maria II está a arrancar neste momento. O Convento da Saudação, em Montemor, ou mesmo a Fortaleza de Sagres, também vão ter um investimento significativo. Um pouco por todo o país vamos ter intervenções em muralhas, em igrejas, alguns que foram muito afetados pelas intempéries do inverno passado.
Já afirmou que irá fazer uma revisão do Estatuto dos Profissionais da Cultura. Em que sentido serão as alterações?
O Estatuto tem três dimensões. Um que se liga com o registo dos trabalhadores do setor. Um outro que tem a ver com a regulação da participação do mercado de trabalho na cultura. E nessa dimensão devo dizer que faço uma avaliação muito positiva. Depois tem uma terceira parte, que se prende com a criação de um mecanismo de proteção social dedicado aos trabalhadores do setor da Cultura. Esse mecanismo é um sistema contributivo e reconhece especificidades como a intermitência, e criou um sistema de proteção social em que há uma proteção para a interrupção do trabalho, uma espécie de subsídio de desemprego, de que o conjunto dos trabalhadores independentes não beneficia. Mas para se ter acesso a essa contribuição, as entidades que beneficiam da prestação de serviço são obrigadas a fazer uma contribuição adicional de 5% e os trabalhadores têm de fazer uma quotização adicional. O número de prestadores de serviços que fez essa quotização é muito reduzido e implica fazer uma reflexão.
No sentido de reduzir essa quotização por parte do trabalhador?
Essa pergunta é muito relevante, porque não podemos reduzir ao ponto de deixar de ser um regime com uma contribuição diferenciada dos outros trabalhadores independentes, porque senão aí estamos a criar uma desigualdade. É preciso encontrar um equilíbrio. Como é que isso se alcança? Acho que é mesmo desafiante, mas a verdade é que a experiência destes meses do estatuto revela que o nível de adesão para efeitos de proteção social é mesmo muito baixo.
A deputada Joana Mortágua disse esta semana que com um aumento de 79 milhões conseguiu condenar o sistema inteiro dos apoios sustentados. O modelo concursal da Direção-Geral das Artes ainda faz sentido?
Há várias coisas que eu não acompanho nessa leitura do Bloco de Esquerda, sobre esta matéria e sobre muitas outras, naturalmente. Primeiro é o tom apocalíptico sobre a realidade. Eu não sei como é que é possível fazer essa afirmação, quando neste concurso de apoios sustentados, por relação ao anterior, temos mais entidades apoiadas. São 212, eram 186, e em média cada uma delas recebe sensivelmente o dobro por ano do que recebia no ciclo anterior. São 200 mil euros que comparam com cerca de 100. Basta andar pelo país, contactar as entidades, perceber que elas estão a contratar trabalhadores, porque, aliás, os montantes de apoio estão associados a obrigações de fazer contratos sem termo. Quanto à segunda dimensão da pergunta, se a lógica concursal faz sentido, faz todo o sentido. Acho que o sistema de concursos é mesmo o pior sistema do Mundo com exclusão de todos os outros. O que nós temos de fazer é multiplicar as fontes de financiamento para o setor, como os apoios à programação em rede. Uma forma de compensar as assimetrias na Cultura é, precisamente, investir na programação em rede. A rede portuguesa Teatros e Cineteatros tem 5 milhões de euros do Ministério da Cultura, que são acompanhados por outros 5 milhões do lado dos municípios. Vamos abrir um novo concurso com mais 2 milhões e meio, e ainda criámos a Rede Portuguesa de Arte Contemporânea para apoiar as entidades do setor com 2 milhões de euros. Da mesma forma que esta semana abriu o concurso de Arte em Coesão, precisamente para apoiarmos os municípios onde há pouca densidade de criação artística.
Em que moldes vai funcionar o cheque-livro?
O cheque-livro é, acima de tudo, uma iniciativa que visa complementar aquilo que é o financiamento do lado da oferta, quer do Ministério da Cultura, quer das autarquias locais, com um mecanismo do lado da procura. Escolhemos o livro, porque não é só a base de todo o edifício cultural, como, sendo uma tecnologia muito antiga, é também uma tecnologia ameaçada. Há aqui uma outra componente, que é a experiência da compra e da escolha de um livro. Todos os jovens que nasceram em 2005 e 2004 vão ter acesso a um voucher que podem trocar por um livro numa livraria. As compras serão em espaços físicos, não em lojas online, para experimentar e escolher um livro. Há uma série de mecanismos na operacionalização desta medida que são exigentes e é nesses mecanismos que temos estado a trabalhar.
A Fundação da Casa da Música tem sido muito criticada. Que avaliação faz da nomeação de Mário Barreiros?
Não acompanho essas críticas em relação à Casa da Música. A Casa da Música tem duas ou três singularidades que gosto sempre de recordar. A primeira é a sua própria história, a forma como resulta num processo da Capital Europeia da Cultura no Porto, a dinamização da sociedade civil que se envolveu na Casa da Música desde o início, essa relação entre o público e o privado. Em segundo lugar, é um equipamento dedicado exclusivamente à música. Não há muitos equipamentos desta natureza na Europa. Julgo que, numa altura em que a Casa da Música atingiu a sua maioridade, há uma reflexão a fazer sobre a sua própria missão. O mundo mudou muito, o mundo dos consumos culturais, e, portanto, a Casa da Música deve ter uma missão igual àquela que tinha quando foi fundada?
Qual é a sua opinião sobre isso?
A minha opinião é que há mudanças. Há desafios para o serviço educativo que são diferentes dos que existiam há perto de duas décadas. Há desafios para o território. A Casa da Música tem uma orquestra que, aliás, é quem consome o essencial da dotação pública. É preciso ver como é que se pode envolver o território nestes equipamentos. Por exemplo, a obra no Teatro Nacional D. Maria II, que está agora a decorrer e levou ao fecho do teatro, obrigou - e estou aqui a dizer obrigou porque acho que há um lado virtuoso nisto -, a fazer uma odisseia pelo conjunto do país. E, portanto, assumir a sua dimensão nacional.
Acha que a Casa da Música está muito fechada dentro dos seus muros de betão?
Não é fácil uma orquestra sinfónica andar em itinerância, mas há um desafio, que é envolver o território. E envolver o território pode ser trazer as pessoas para dentro do betão. Há um desafio, claramente, de democratização do acesso, de relação com o território na Casa da Música. E depois há uma questão também que se prende com a dimensão artística. A Casa da Música tem seis administradores não- -executivos e uma administradora-delegada e nenhum deles tem, por exemplo, uma ligação à música. Quando o Estado tiver de nomear, acho que há uma reflexão a fazer sobre isso. Da mesma forma que defendia, e fiz isso para os teatros nacionais, que foi passar a ter concurso para os diretores artísticos, já aconteceu em São Carlos e acontecerá sucessivamente no Teatro Nacional de São João e na Companhia Nacional do Bailado, julgo que é importante ter esta lógica concursal também na Casa da Música e limitação de mandatos.
E o Coliseu do Porto, vai haver um modelo de concessão?
O modelo de concessão vai acontecer. Foi essa a decisão da Assembleia Geral do Coliseu e não foi revertida. Tivemos uma pandemia que prejudicou claramente a possibilidade de avançar na concessão e na intervenção que é preciso fazer. Sobre esta matéria, como em relação a muitas que têm a ver com a Cultura, quem tem capacidade de tomar essas decisões são os autarcas. O presidente da Câmara Municipal do Porto deu-me sempre conta do interesse que tinha na concessão do Coliseu e eu acompanho essa opção.