Com a subida inevitável do R para 1.0, especialistas consideram fulcral incluir nos cálculos dados como os da positividade e dos rastreios em atraso. Caso contrário, o país abrirá para fechar de novo
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O gráfico ontem apresentado pelo primeiro-ministro aos portugueses para explicar as linhas vermelhas que nos guiarão em matéria de desconfinamento causou surpresa junto dos peritos que o Governo tem ouvido nas reuniões do Infarmed. Por ser simplista e por considerar apenas dois indicadores para a abertura, ou não, da sociedade. A incidência a 14 dias por 100 mil habitantes e o R, com o vermelho pintado nos 120 casos e no 1.0, respetivamente. Numa altura em que, sabe-se e já o foi dito pelos especialistas, o R caminha inevitavelmente para 1.0 com a estabilização de novos casos diários. Se o Executivo se guiar apenas por aqueles dois indicadores, o país irá confinar pouco tempo depois de abrir.
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Isso mesmo é explicado ao JN pelo epidemiologista Manuel Carmo Gomes: "Se imperasse a sobressimplificação [referindo-se ao gráfico apresentado por António Costa] obrigaria a confinar logo a seguir a desconfinar". Porque, explica, estando o R a subir há cerca de três semanas, "é normal que, desconfinando, ultrapasse o 1.0". Tanto mais que, diz Carmo Gomes, a variante inglesa pesa já cerca de 70% no total de novos infetados.
Aquele perito, que, com a sua equipa da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, traçou uma matriz de risco assente em múltiplos critérios, avisa que "é preciso saber conduzir o automóvel". Isto é, desmonta Carmo Gomes, fazer "uma avaliação permanente do risco, diariamente, tendo em conta não apenas o R, mas a lista de indicadores proposta" pelos cientistas no seu relatório final, já enviado ao Ministério da Saúde, após a reunião da passada segunda-feira no Infarmed.
Como sejam, especifica, "a percentagem de rastreios epidemiológicos com mais de 24 horas de atraso", que, de acordo com o referido relatório, denominado "Linhas Vermelhas", não deverá passar os 10%. Mas também ter em conta a taxa de positividade, que nos dá a relação de positivos sobre testados e que "não deverá passar os 4%", concretiza. Passando aquele valor, é sinal de reforçar a testagem, "para não deixar subir muito os novos casos e a incidência", explica.
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Há muito, aliás, que os peritos defendem que a pandemia controla-se com mais testagem. Porque quanto menor a positividade menor o número de assintomáticos a circular e a transmitir o SARS-CoV-2. Isto quando se sabe que dois terços dos positivos não têm sintomas. Depois de ter atingido uns estrondosos 20% (um em cada cinco testes era positivo) a taxa de positividade está, atualmente, nos 3,5%, com tendência crescente, segundo apurou o JN.
Amplitude do R
A questão em torno do R é tão sensível que os peritos ouvidos pelo Governo sugeriram um intervalo maior, entre o 1.05 e o 1.1, sabe o JN. Isto porque quando a incidência estabiliza, no tal planalto, o R aproxima-se do 1.0, podendo ultrapassá-lo. Sendo que, refira-se, num ano inteiro de pandemia nunca aquele indicador, que mede o grau de transmissibilidade do vírus, esteve tão baixo.
Em linha com Carmo Gomes, o matemático Óscar Felgueiras, ontem mesmo citado por António Costa na sua comunicação ao país, defende uma análise qualitativa da realidade nacional. "O esquema de risco apresentado é simplificado e, especialmente por causa disso, deve ser complementado com uma análise qualitativa da situação, envolvendo, eventualmente, outros indicadores, como os da positividade e inquéritos epidemiológicos".
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A limitação ao R, frisa ao JN, "não só é arriscada como desaconselhável". Porque, explica, "um R acima de 1.0 com uma incidência, por exemplo, de 20 a 30 casos a 14 dias por 100 mil habitantes, merece alguma relativização do risco". Entendendo, também, Óscar Felgueiras, que "o R vai ficar, inevitavelmente, acima de 1.0".
Sendo que, quando qual tal acontecer, do gráfico apresentado pelo primeiro-ministro fica "implícita a suspensão das medidas", explica o matemático. Altura em que terão de ser tomadas decisões que, na sua opinião, "devem ser analisadas qualitativamente, com outros indicadores". Ou seja, se haverá alturas em que se justificará subir o nível de risco, suspendendo eventualmente medidas, noutras "o bom senso mostrará claramente que não será o suficiente para tomar medidas como a suspensão do calendário" de desconfinamento.
O JN questionou, de manhã, o gabinete do primeiro-ministro, o Ministério da Saúde e a Direção-Geral da Saúde sobre se serão tidos em conta outros indicadores além da incidência e do R e se o gráfico de análise de nível de risco será do conhecimento geral da população, mas até ao momento não obteve respostas.