Tratamento existente tem como base outros modelos de reabilitação. Universidade de Aveiro testa kit de aromas naturais para treinar.
Corpo do artigo
Ana Catarina Carvalho perdeu o olfato na sequência de uma infeção por covid-19 e ainda não recuperou. É uma das muitas pessoas que vivem com a sequela que não tem tratamento. Os especialistas admitem desconhecimento e a Universidade de Aveiro desenvolveu um kit para treinar.
A assistente de contabilidade de Valongo ainda não perdeu a esperança de conseguir recuperar o olfato e o paladar. A doença foi-lhe diagnosticada duas vezes, em março e novembro de 2020. "Da primeira vez perdi o olfato na totalidade e o paladar foi afetado". Da segunda, "acho que não perdi tanto porque já quase nada tinha a perder", conta.
No início foi difícil, "afetou imenso" e a comida "não sabia ao mesmo", mas adaptou-se. "Atualmente o olfato continua distorcido e é muito menos apurado". Não há tratamento, mas gostaria de fazer "alguma coisa para recuperar", diz.
A perda de olfato é "um défice que deve ser levado a sério", defende Vítor Tedim Cruz, diretor de Neurologia do Hospital Pedro Hispano e investigador do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto.
A questão da "anosmia deveria ser caracterizada [como outras perdas] e estudadas formas de reabilitar". Mas ainda "não há conhecimento sobre como se reabilita a perda de olfato", diz.
O que se faz atualmente, explica Tedim Cruz, é "tratar empiricamente com base noutros modelos de reabilitação", que passa por corrigir outras disfunções para a pessoa estar saudável. O álcool, tabaco, desnutrição, exemplifica, "atrasam a recuperação de qualquer lesão neurológica".
Os profissionais de saúde procuram "estimular" as pessoas para que "continuem a fazer as mesmas coisas no dia a dia", mas, "em termos de treino específico, na verdade, ninguém sabe de nada", admite.
Perdas abruptas e totais
A covid-19, ao provocar "perdas abruptas e totais do olfato", que demoram muito tempo a recuperar ou nem têm recuperação, chamou a atenção para o desconhecimento na forma de tratar esse sentido. A situação deve, pois, ser aproveitada para "estudar como treinar o olfato".
Foi para ajudar a treinar os desvios olfativos em doentes afetados pela covid-19 que um grupo de investigadores da Universidade de Aveiro desenvolveu, em parceria com a Sogrape, um kit de discos com aromas naturais. Vão desde pó de alecrim a pó de bagaço de touriga nacional com grãos de erva-doce e o objetivo é que os doentes os cheirem.
Sílvia Rocha, líder do grupo de investigação do projeto TOP COVID, diz que é "importante" que se faça "treino" para os doentes recuperarem.
O ensaio começou no final de julho e é expectável que haja resultados no último trimestre do ano. O propósito é que, no futuro, o kit possa ser usado na recuperação da disfunção olfativa com várias origens e não apenas decorrente da covid-19.
Um em cada quatro leva mais de dois meses
Um em cada quatro doentes com disfunção do olfato decorrente da doença covid-19 não tinha ainda recuperado o sentido 60 dias depois da perda. O dado ressalta de um estudo publicado no "Journal of Internal Medicine". O estudo avaliou 2581 pacientes de 18 hospitais europeus, entre março e junho de 2020.
A prevalência de disfunção relatada pelo paciente foi de 85,9% em casos leves de covid-19, de 4,5% em casos moderados e de 6,9% em casos graves a críticos. Cerca de 24% dos pacientes não recuperaram subjetivamente o olfato 60 dias após o início da disfunção. Quando uma amostra menor de pacientes foi avaliada com testes objetivos, 15,3% ainda apresentavam deficiência aos 60 dias e 4,7% não haviam recuperado o olfato ao fim de meio ano.
"A disfunção olfativa é mais prevalente nas formas covid-19 leves do que nas formas moderadas a críticas, e 95% dos pacientes recuperam o olfato seis meses após a infeção", explicou, em comunicado, Jerome Lechien, da universidade Paris-Saclay, coautor do trabalho.