Uma cidade pensada para crianças. Sem a ameaça dos automóveis a passar constantemente e com muito espaço para caminhar e brincar. Onde idosos e pessoas com deficiência passeiam sem dificuldade. É assim em Pontevedra, a menos de 50 quilómetros da fronteira de Valença
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Primeiro estranha-se. A chegada a Pontevedra, na Galiza, em Espanha, para quem tem acompanhado notícias sobre a política adotada naquela cidade de retirada dos automóveis da zona urbana - até o "The Guardian" -, pode até desiludir. Há trânsito, como noutra cidade qualquer. Mas à medida que nos entranhamos nas ruas, o modelo com o lema "Pontevedra: Menos carros, mais cidade", que anda nas bocas do Mundo (ler entrevista ao lado com Anabel Gulias), revela-se. E é como entrar num grande pátio onde uma multidão caminha, convive e se diverte. Despreocupadamente.
As ruas são planas. E ainda que haja alguns carros a circular, são praticamente todos comerciais, e rodam em marcha tão lenta que quase não se ouvem. A velocidade máxima permitida no centro da cidade é de 30 km/hora. Veem-se táxis, veículos a fazer cargas e descargas ou moradores que pontualmente necessitam de parar perto de casa ou de algum comércio. Há um período das 10 às 12 horas, e das 16 às 18, em que lhes é permitido. Mas não há trânsito de atravessamento.
Aqui os carros estão domesticados. Quando alguém buzina, dizemos logo que não deve ser de Pontevedra
Na maioria das ruas centrais, as faixas de rodagem foram eliminadas e os passeios foram rebaixados. Há canteiros com flores e árvores. E em vez de automóveis, circulam pessoas. A via pública é todo um passeio onde se escutam vozes e risos de adultos e crianças e o chilrear dos pássaros. Não há preocupações ou irritações com buzinadelas.
"Aqui os carros estão domesticados. Não buzinam. Quando alguém buzina, dizemos logo que não deve ser de Pontevedra", afirma o alcalde Miguel Anxo Lores, mentor deste modelo urbano, já premiado várias vezes em Espanha e também a nível internacional.
Começou a ser implementado há 19 anos por Lores, após ser eleito presidente. Até ali, durante 12 anos, foi vereador da Oposição. "No primeiro mês pedonalizamos todo o Centro Histórico, que são 300 mil metros, mas o resto da cidade foi pouco a pouco. Tem sido um processo longo e ainda não o acabamos. Temos coisas para melhorar, mas quando começamos Pontevedra era um armazém de carros. Entravam mais de 100 mil por dia", recorda. "Era o caos. As pessoas queriam ir embora daqui. Passavam mais 14 mil carros na Rua Michelena, onde está instalada a sede do município (pedonal), e outros 28 mil na Praça de Espanha (pedonal)".
O estacionamento foi arrumado para 12 parques subterrâneos pagos (cerca de cinco mil lugares), e para 13 mil lugares gratuitos à superfície em ruas menos centrais e ao redor da cidade. Foi criado um mapa, o MetroMinutos, onde em vez de uma linha de metro se desenham as artérias pedonais e os tempos de percurso entre cada ponto. O tempo máximo entre estacionar e chegar a pé ao centro é de 15 minutos.
Aqui as pessoas são o mais importante. Os velhinhos, as crianças, as pessoas com deficiência são os reis da cidade
Para fazer esta "revolução" urbana, diz o próprio Miguel Lores, foi buscar inspiração à obra "A cidade das crianças" do pedagogo italiano Francesco Tonucci. Um livro que teoriza sobre a transformação de cidades a partir do olhar de criança. Tonucci defende que o papel das políticas públicas urbanas passa por garantir o direito a brincar dos meninos e meninas. "Não sei como é noutros países, mas em Espanha as crianças estão menos de uma hora ao ar livre. Vão de carro para todo o lado. Em casa brincam no computador. Não fazem vida no espaço público. É a geração do assento de trás (nos carros). Que tipo de crianças estamos a criar ?", argumenta o alcalde, sublinhando: "Aqui as pessoas são o mais importante. Os velhinhos, as crianças, as pessoas com deficiência são os reis da cidade. Depois seguem-se as bicicletas, o transporte público, o transporte económico e por último os veículos privados". "Isso é possível, desde que haja uma tomada de decisão política. O processo foi complicado, porque há sempre oposição política e medo da mudança. Havia medo que a cidade perdesse atividade, mas aconteceu precisamente o contrário: o comércio local medrou", garantiu.
Nas ruas e praças centrais de Pontevedra, veem-se crianças a correr livremente, mães que empurram carrinhos de bebé, muitos (mas muitos) cães que acompanham alegres e civilizadamente os donos. Filhos que amparam os pais de idade avançada e em declínio, numa caminhada lenta. E também há inúmeras esplanadas onde as pessoas tragam o café e tagarelam, alheias a quem passa.
Segundo dados do Concello de Pontevedra, o núcleo urbano é habitado por 65 mil pessoas e há em média 71 veículos a motor por cada 100 habitantes. Destes, 70% deslocam-se, dentro da cidade, a pé ou em bicicleta, e 81 % das crianças, dos 6 aos 12 anos, vão para a escola a caminhar, sendo que muitas se deslocam sem a companhia de um adulto e 91% dos veículos que circulam nas estradas que dão acesso à cidade não entram no centro.
Soluções de mobilidade limpa
Mas o que mais diferencia é a diversidade de soluções de mobilidade limpa que a população, independentemente da idade, adota para se deslocar: bicicletas, monociclos, triciclos, patins, trotinetas, skates, segway, karts e tudo o que é veículo com rodas, elétrico ou movido a tração humana.
Ines Mendez descobriu um furo de negócio. Na ampla Praça de Espanha, instalou, há três anos, uma loja de aluguer de bicicletas e veículos alternativos. "É indispensável para o nosso negócio que haja zonas pedonais e, nesse aspeto, Pontevedra tem muito espaço", afirma.
Julia Conti, de 92 anos, lê o jornal sentada ao sol, numa das praças da cidade, enquanto a sua cadela "Bimba" pulula. E indica a descontração como uma das virtudes da cidade: "O que mais gosto é de não ter de parar e esperar que o semáforo mude para poder atravessar a rua"