A última fotografia de Madeleine, tirada pelos pais na piscina do Ocean Club, na véspera do seu desaparecimento, mantém-se emoldurada num coração vermelho, colocado mesmo abaixo da imagem de Nossa Senhora da Luz, no altar--mor da capela da vila.
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Tem fitas amarelas e, de cada um dos lados da imagem, escrito em inglês e português, a frase: "Rezem por mim".
Este é o único sinal visível da presença de Maddie, numa localidade que está cansada de dois anos de atenção dos média, que se mantém acesa pelo casal McCann. Ainda recentemente, cartazes pequenos e grandes com a foto de Maddie e com o apelo "Ajude-me" foram espalhados por muros e paragens de autocarro. Rapidamente foram retirados pela população. Um, enorme, mantém-se à entrada da praia da Luz, mas foi vandalizado com tinta branca. Em Lagos, junto à marina, encontra-se um cartaz idêntico e intacto.
"Por que não nos deixam em paz?" É a pergunta que se ouve mais vezes nas ruas e estabelecimentos comerciais da praia, quando se fala no caso. Os habitantes dizem-se "fartos". Do casal McCann, dos jornalistas e de tudo o que diga respeito ao desaparecimento. Recusam falar mais e protestam contra as imagens que vão sendo transmitidas pelas televisões para todo o Mundo e que "prejudicam o turismo". A custo, admitem alguma curiosidade em saber a verdade, mas já perderam as ilusões. Para eles, o desaparecimento de Madeleine "será sempre um mistério".
A poucos dias do início de nova época turística, os comerciantes e hoteleiros mostram-se apreensivos. A praia da Luz - que sofreu obras de beneficiação ao longo de 2007 e 2008 - "está quase deserta", há lojas fechadas e as placas anunciando a venda de imóveis e espaços comerciais multiplicam-se.
"Depois desse caso nunca mais vamos ter sossego", assegura uma moradora, que se mostra chocada com a recente visita que Gerry McCann fez à praia da Luz, para preparar um documentário para um canal de televisão inglês.
"Quando está para começar a época eles aparecem e arranjam qualquer coisa para falar. Eles estão a prejudicar-nos", assegura a mesma moradora, que afiança não ter "estranhado" o facto dos cartazes e dos "outdoors" com a fotografia da Maddie e com o apelo "Ajude-me" terem sido retirados ou destruídos.
"Isto é um insulto para nós. Chegam aqui com uma atitude arrogante, de quero posso e mando, e só nos prejudicam", diz um outro residente, que trabalha num espaço comercial em Lagos.
O despedimento recente de 21 trabalhadores do Ocean Club, o aldeamento onde os McCann e os seus sete amigos passaram férias, em 2007, aumenta a revolta de quem tem no turismo o seu ganha-pão. O ambiente "está pesado" e as pessoas "andam tristes e desmotivadas". "É uma nuvem negra que nunca mais passa", afiançam.
Uma das funcionárias despedidas, acedeu a falar com o JN, mas só sob anonimato. Recorda as grandes obras que foram feitas no Ocean Club e a perspectiva de uma grande época que animava os trabalhadores em 2007. "Tínhamos tudo esgotado e muita gente em lista de espera", adianta, recordando que "de repente tudo mudou".
O desaparecimento de Madeleine levou ao cancelamento de muitas marcações e a crise que entretanto se fez sentir "acabou com o resto". "O caso prejudicou toda a gente entre o Burgau, praia da Luz e Lagos" e hoje "há pessoas completamente desesperadas sem saberem o que vão fazer à vida". E não só portugueses.
"Há famílias inglesas que venderam tudo no seu país e que procuraram a praia da Luz por ser sossegada e poderem aqui criar os seus filhos. Abriram negócios e agora não sabem o que vão fazer", refere a ex-funcionária.
A "revolta" subiu de tom depois da presença recente de Gerry no Algarve. "É um abuso. Toda a população se uniu em volta deles e os ajudou e eles nem agradeceram. Agora continuam a vir cá e colar cartazes. É fazer pouco de nós", sustenta a ex-funcionária que não esquece as palavras da cartas de despedimento que recebeu.
Um dos fundamentos invocados pela administração do "resort", prende-se com "o infeliz acontecimento Madeleine McCann". Na missiva entregue em Março, os responsáveis pelo Ocean Club dizem que os "gravosos resultados do exercício de 2007 " tiveram "origem no caso Madeleine McCann". "E que culpa temos nós disso", questiona a desempregada, garantindo que todos os funcionários "sempre apoiaram o casal e todos os clientes e nunca falaram do caso". "Sempre os respeitámos e apoiámos e agora ele (Gerry) vem para aqui fazer pouco de nós? Não está correcto", desabafou.
Se portugueses e ingleses da praia da Luz estão ainda em carne viva com o caso Maddie, pelas consequências que sofrem na pele, por causa da crise e da má fama, o Mundo começa a esquecer a história da menina que arrebatou multidões. Um sinal disso mesmo é o facto de um casal inglês, na casa dos 70 anos, de visita à capela da Senhora da Luz, só ter reparado no "altar de Maddie" depois de questionado pela reportagem do JN. E mesmo assim não perdeu ali mais do que alguns segundos.