"Eu, que já tive tudo, estou a aprender a viver com nada". Para Manuel Pereira - 62 anos de idade, 45 de descontos para a Segurança Social e quatro de desemprego - o caminho entre uma vida desafogada e esta, de rendimento de inserção e habitação social, faz-se com fé, perseverança, esperança.
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É conhecido por outro nome, pediu ao JN que reservasse a sua identidade para proteger a família, mas quis deixar uma mensagem a quem está numa situação tão má quanto a que ele está a deixar para trás: "Que façam um esforço para aprender a viver com pouco".
O conselho serve para demasiadas pessoas em Portugal. Um em cada cinco portugueses vive na pobreza, mesmo depois de o Estado redistribuir riqueza através de apoios sociais, cada vez menores; há uma nova classe de pobres, que até há pouco formava parte da classe média; o fosso entre os ricos e pobres está a aumentar e Portugal é o quinto país da União Europeia mais desigual; um quinto dos trabalhadores ganha o salário mínimo e mais de 700 mil idosos têm a pensão mínima. Os anos de austeridade e crise económica agravaram um cenário que já povoava o país de pobreza. O desemprego disparou e, hoje, mais de metade dos desempregados não tem subsídio. Muitos sempre viveram do salário mínimo, mas outros pertenciam a uma classe média agora forçada a recorrer às cantinas sociais.
A emigração aliviou alguma pressão, mas muitos vivem de biscates, da caridade ou do rendimento de inserção, que foi cortado, tal como o complemento solidário de idosos, entre outros. Por detrás dos números com que a pobreza costuma ser ilustrada estão "pessoas concretas, com as suas virtualidades e dificuldades", ressalva José Baptista, presidente da União das IPSS do Porto. Pessoas que precisam de alimentação, habitação, apoio na educação e saúde. E depois precisam de trabalho com salário digno, que lhes permita sair da pobreza.
Portugal tem tido assistencialismo (que supre as necessidades básicas, mas "perpetua a pobreza") quando precisa de assistência (um "direito social consagrado" que ajuda nos momentos de necessidade e "cria os mecanismos que permitem sair da pobreza"), diz o sociólogo Alfredo Bruto da Costa. "A pobreza não se combate com sobras", seja do Orçamento do Estado, dos lucros das empresas ou das famílias, acredita. Por outras palavras, diz Eugénio da Fonseca, presidente da Cáritas em Portugal, "o Estado tem de dar outra atenção a mecanismos de proteção social e respeitar os direitos das pessoas, não dar esmolas".
Emprego, salário, educação Nos últimos quatro anos, as necessidades básicas foram sendo supridas através da intervenção de organizações da economia social. Os líderes de três confederações louvam a atitude do Governo de Passos Coelho, não porque lhes tenha dado negócio, mas porque soube aproveitar o seu potencial de resposta e evitar o colapso do país, garantem Lino Maia (IPSS), Manuel Lemos (Misericórdias) e Luís Alberto Silva (Mutualidades).
Para as confederações, o caminho de saída da pobreza é relativamente consensual: é preciso mais emprego, salários mais altos, melhor distribuição da riqueza e depois educação, que sustente o avanço social. "Se o salário não é suficiente para uma vida digna, estimula-se o desemprego, a desilusão, a amargura", diz Luís Alberto Silva.
"Apesar da crise, ou por causa dela, aumentou a diferença entre os que têm pouco e cada vez menos e os que têm mais e cada vez mais", acentua Lino Maia. "Sem uma população educada não há desenvolvimento económico", acredita Manuel Lemos, destacando o envelhecimento da população. As voltas da vida A economia melhora, mas Manuel não viu benefícios. Divide a vida em três épocas. Nos primeiros 40 anos, viveu do salário do emprego de dia e de outros rendimentos, ilícitos, da noite. "Só não matei nem roubei, de resto não deixei nada por fazer". Levou uma vida de pecado, confessa, nas corridas de automóvel e na noite, até conhecer a atual mulher. "Com ela encontrei a fé". Mudou de vida, mas os dois salários ainda permitiam chegar ao fim do mês sem fazer contas. "Era carros, motos, equipamentos de marca...".
Há cinco anos, lançaram-se num café-snack. "O negócio corria tão bem que quisemos ir para um sítio melhor, mas fizemos um acordo de aperto de mão e perdemos tudo". Mesmo tudo. Eram ambos sócios-gerentes e o erro custou-lhes o subsídio de desemprego. Sem dinheiro, tiveram de devolver o carro, foram despejados de casa, racionaram o cabaz de alimentos da Cáritas para que durasse o mais possível, mudaram-se para uma casa de habitação social. No início, Manuel tentou procurar emprego. "Tem um currículo invejável", disseram-lhe de Angola, a sua última tentativa no ramo automóvel, "mas procuramos alguém mais novo".
Por cá, tentou trabalhar como porteiro, trolha, segurança, mas diziam-lhe que preferem os reformados, a quem pagam debaixo da mesa. Hoje, está à espera da reforma. Se for deferida, conta receber uns 700 euros por mês, o dobro dos 340 euros de rendimento de inserção a que têm direito Manuel, a mulher, a filha que acabou agora o 12.º ano e a sogra. "Eu não sabia o que era não ter, mas agora sei o que é ter muito, pouco e nada". Nem poupava para o futuro, sequer. Em erro que, garante, não voltará a cometer se a vida melhorar.