Tribunal de Contas divulga a análise à privatização da ANA, mais de cinco anos depois do Parlamento ter solicitado uma auditoria. Entidade diz que Estado perdeu dinheiro em todo o processo de privatização.
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O Tribunal de Contas (TdC) concluiu que "a privatização da ANA não salvaguardou o interesse público", de acordo com o relatório de auditoria ao processo de venda da empresa gestora de aeroportos portugueses, divulgado esta sexta-feira. A auditoria foi pedida pela Assembleia da República em outubro de 2018, seis anos depois da venda da concessionária do serviço público aeroportuário de apoio à aviação civil ao grupo francês Vinci.
O TdC concluiu que houve "urgência em concluir a privatização" da ANA, desencadeando-se um "processo sem todas as condições necessárias à sua regularidade, transparência, estabilidade, equidade e maximização do encaixe financeiro". Para o TdC, por exemplo, verificou-se uma "avaliação intempestiva da ANA", o que "não supriu a falta de avaliação prévia, que era legalmente exigível". Além disso, todo o processo ocorreu num cenário em que a "maioria dos países da União Europeia manteve participação no capital social das entidades gestoras aeroportuárias", enquanto o Estado português "decidiu a venda integral da ANA".
"O Estado foi lento a aprovar o regime de salvaguarda de ativos estratégicos essenciais para garantir a defesa e segurança nacional e a segurança de aprovisionamento do país em serviços fundamentais para o interesse nacional, mas lesto a promover a execução do processo de privatização da ANA sem esse respaldo legislativo", critica a entidade que fiscaliza o uso do dinheiro público.
"A privatização da ANA comportou a concessão de um monopólio fechado por 50 anos num setor estratégico para a economia do país", relembra o documento em que o TdC realça que o Estado, então governado pela coligação PSD/CDS, desperdiçou a "oportunidade de introduzir os benefícios da concorrência" no setor.
Esse "desperdício", refere o relatório da entidade presidida por José Tavares, contribuiu "para a materialização do risco de desproteção dos interesses nacionais" na transição da ANA da esfera pública para a esfera privada.
A não salvaguarda do interesse público deveu-se ao "incumprimentos dos objetivos" do processo de privatização, tendo em conta o regime legal aplicável e aos contratos aeroportuários então celebrados com o Estado.
"Não ter sido maximizado o encaixe financeiro resultante da alienação das ações representativas do capital social da ANA", segundo o TdC, foi um dos objetivos que ficaram por cumprir.
Por exemplo, "o Estado concedeu à Vinci os dividendos de 2012 [gerados pela ANA], quando a gestão ainda era pública, e suportou o custo financeiro da ANA para cumprir o compromisso assumido no contrato de concessão, tendo, por isso, o preço da privatização (1.127,1 milhões de euros) sido 71,4 milhões de euros inferior ao oferecido e aceite (1.198,5 milhões de euros).
Acrescem 286 milhões de euros pagos pelo Estado ao Munícipio de Lisboa - "pela titularidade de terrenos afetos à concessão, o que permitiu à autarquia amortizar quase metade da dívida de médio e longo prazo" - e 80 milhões de euros pagos à Região Autónoma da Madeira "pela cessão, por 50 anos, da utilização, gestão e exploração dos bens do domínio público aeroportuário regional, bem como da posição contratual de concedente do interente serviço público". Os dois montantes, sublinha o TdC, importam "para avaliar se o encaixe financeiro com a privatização foi maximizado".
Para o TdC, considerando as contrapartidas e não havendo "evidência robusta" de a proposta técnica ser a melhor, "materializou-se o risco de sobreavaliação da oferta da Vinci.
A Vinci desembolsou pela ANA um valor global de 3,08 mil milhões de euros (1,2 mil milhões de euros como um fee pela concessão, mais 700 milhões de euros pela dívida e outros 1,2 mil milhões de euros correspondentes ao equity value da empresa).
Acresce a conclusão que "o contrato de concessão não estava consolidado até ao dia da entrega das propostas vinculativas, conferindo o risco de, neste processo, os valores da empresa não terem sido maximizados".
O TdC nota também que o projeto do novo aeroporto de Lisboa, que à data da privatização, estava associado á construção de uma terceira ponte "é indissociável do processo de privatização pelo valor que aportou à ANA". Neste ponto, o TdC relembra que a Vinci já era detentora da maioria do capital social da Lusoponte, concessionária das duas travessias rodoviárias sobre o rio Tejo em Lisboa (ponte Vasco da Gama e ponte 25 de Abril), até 24 de março de 2030.
Para o supervisor das contas públicas, o governo de então "privilegiou o potencial encaixe financeiro com a venda da ANA, no curto prazo, em detrimento do equilíbrio na partilha de rendimentos com a concessão de serviço público aeroportuário, no longo-prazo".
Desta forma, o Estado falhou no "reforço da posição competitiva, do crescimento e da eficiência da ANA, em benefício do setor da aviação civil portuguesa, da economia nacional e dos utilizadores e utentes das estruturas aeroportuárias geridas pela ANA".
"Não ter sido minimizada a exposição do Estado português aos riscos de execução relacionados com o processo de privatização, não se tendo assegurado que o enquadramento deste processo protegeria cabalmente os interesses nacionais,", foi outro objetivo por cumprir apontado pelo TdC.
O Tribunal de Contas critica, ainda, que "disposições sobre a regulação económica da concessão transitaram, durante o processo de privatização, da lei aplicável para o contrato". A alteração de termos regulatórios resultou num "prejuízo" para "a estabilidade processual e para a transparência" de todo o processo.
Por exemplo, Autoridade Nacional da Aviação Civil (ANAC) acumulou, entre 12 de março de 2020 e 5 de janeiro de 2023, competências "conflituantes de reguladora e de gestora de contratos de concessão de serviço público". Para o TdC, isso coloca "em crise a independência" da ANAC e a "independência da regualção económica" dos contratos envolvendo a ANA, o Estado e a Vinci.
O TdC também condena a Parpública por não conseguir explicar "desconformidades e inconsistências" no processo de privatização da ANA, o que revela haver "risco material de falta de fidedignidade de documentação processual que foi determinante para a escolha do comprador".
Para o TdC, a falta de uma entidade pública devidamente habilitada para este processo comprova "a falta de controlo público evidenciada no processo de privatização da ANA", que se verificou "durante a primeira década da ANA privada", e demonstra que "continua premente a necessidade de controlo público eficaz sobre a receita pública proveniente da concessão de serviço público aeroportuário".
No âmbito destas conclusões, a entidade liderada por José tavares, recomenda, entre outras, que se pondere a "realização de diligências necessárias" para esclarecer como foi feita a escolha do comprador da ANA e que se habilite e nomei entidades públicas administradoras das receitas públicas com origem na ANA. A gestão do contrato de concessão de serviço público aeroportuário também deve ser atribuída a uma entidade "habilitável e habilitada para o efeito", que não a ANAC.