Cerca de 6500 colocados têm até quarta-feira para se apresentar nas escolas. Ricardo Cunha e Ana Paula-Santos fazem contas às despesas com alojamento e viagens.
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Ricardo Cunha e Ana Paula-Santos não se conhecem, mas em comum têm o facto de ultimarem as malas para percorrem centenas de quilómetros e cumprirem o sonho de dar aulas. São dois dos cerca de 6500 professores contratados, no concurso inicial de contratação, cujas listas foram publicadas sexta-feira pelo Ministério da Educação. Têm até quarta-feira para se apresentarem nas escolas.
Ele tem 34 anos, é de Felgueiras e ensina Educação Moral e Religiosa Católica. Vai deixar o pai, que tem problemas de saúde, aos cuidados da irmã, também professora, e parte esta segunda-feira para conhecer os estabelecimentos de ensino que compõem o Agrupamento de Escolas de Silves. Esta foi a 199.ª opção das 215 que colocou. Fica a 575 quilómetros de distância (através da A1 e A2, o trajeto mais curto), mas valeu-lhe um horário completo.
Lutar para entrar nos quadros
O docente já fez contas e sabe que a decisão de lutar pelo "sonho" de dar aulas, entre a renda de uma segunda habitação e os custos das viagens, não vai ficar barata. Só para se apresentar na escola e começar a procurar casa, vai ter de desembolsar "cerca de 500 euros", entre o que terá de pagar em combustível para o carro, portagens e hotel para duas noites, em época alta, no Algarve, conta.
Ricardo dá aulas há 10 anos, depois de ter deixado para trás uma outra formação em Anatomia, e gostaria de ficar efetivo. "Estou numa fase em que arrisco ou poderá nunca acontecer".
Ela tem 50 anos, é de Aveiro e ensina artes há 24 anos, depois de ter trocado o trabalho como arquiteta pela "paixão" de dar aulas. Primeiro optou por horários incompletos para ficar perto de casa e poder estar com a filha, mas, agora que esta entrou na universidade, luta para ter mais "estabilidade" e "melhor reforma". Este ano, Ana Paula-Santos conseguiu horário completo em Samora Correia, Benavente, a quase 250 quilómetros de casa, depois de em anos anteriores ter estado no Algarve e em Grândola.
Ana não gosta de "queixas" e sublinha a "felicidade" que sente em dar aulas, mas acusa o "desgaste". O alojamento é das suas maiores preocupações. Para além da despesa extra que representa, já teve experiências difíceis: numa ocasião pediram-lhe 500 euros por um quarto; já morou num bairro com elevado nível de insegurança, partilhou casa com vários docentes para dividir contas, teve de lidar com "incompreensão" de alguns diretores que não queriam facilitar horários que lhe permitissem ir a casa. Este ano, talvez tenha de deixar o carro para a filha usar e deslocar-se de comboio. O futuro é cheio de incertezas, mas a professora não vacila. "Dar aulas foi a minha opção, não me arrependo".
Efetiva após 18 anos
Em Beja, a professora de Física e Química Ana Ângelo efetivou pela primeira vez este ano letivo de 2021/2022, após 18 anos a percorrer o país. Antes de ter constituído família, a docente, com 40 anos, ficou colocada em Lisboa e chegou a mudar de residência. Mas depois dos filhos nascerem, optou por percorrer centenas de quilómetros diariamente, mas regressar todos os dias a casa, para os conseguir acompanhar.
Nos últimos três anos ficou colocada em Odemira, a 100 quilómetros de casa, mas os vários contratos sucessivos no mesmo local de trabalho permitiram-lhe entrar para os quadros do Ministério da Educação. "Efetivei no Algarve, mas, por mobilidade, consegui mudar e este ano estou a 800 metros de casa", conta, satisfeita.
Para celebrar e, ao mesmo tempo, alertar para as dificuldades que o sistema de colocação dos professores implica para a vida dos docentes e suas famílias, vai cumprir uma promessa: percorrer a distância entre a escola de Odemira onde lecionou e a sua casa, em Beja, a correr (ler texto ao lado).
"Há muitos que estão a passar por isto e as outras pessoas não têm noção da realidade, das condições de trabalho", diz, explicando que, para além dos professores, também os seus "pais, filhos, maridos, vivem este pesadelo constante das colocações longe das famílias".
Iniciativa
Corrida entre Beja e Odemira pretende servir de alerta
A corrida de 100 quilómetros pela vinculação dos professores, que pretende alertar para a "angústia e sofrimento" vividos pelos professores, está marcada para sábado, dia 25 de setembro. Ana Ângelo sai pelas 22 horas do Agrupamento de Escolas de Odemira e chegará a Beja no dia seguinte, fazendo apenas pequenas pausas para descansar e comer. Estima demorar entre 20 a 24 horas. A meta será a residência, perto do recinto onde se realiza o certame Ovibeja. Vários amigos de diversas profissões e locais do país vão acompanhá-la em algumas etapas, como forma de manifestar o seu apoio. Os que quiserem são convidados a juntar-se.
Tutela
Colocados mais cedo
O Ministério da Educação (ME) anunciou na sexta-feira passada, "a mais de um mês do arranque do ano letivo", a publicação no portal da Direção Geral da Administração Escolar das listas de colocação de professores. Nunca tinha "acontecido de forma tão antecipada", realça aquele ministério, sugerindo que assim as escolas podem preparar o ano letivo com mais tempo.
Organizar melhor
A antecipação na publicação, refere o ME, permite aos docentes "conhecerem mais cedo as suas colocações e terem mais tempo para se preparar para o início das aulas" e aos Agrupamentos de Escolas/Escolas Não Agrupadas "disporem de mais tempo para organizar o arranque do ano letivo".
Em detalhe
11 mil
professores vincularam aos quadros do Ministério da Educação nos últimos seis anos, o que reflete " a aposta na estabilidade do corpo docente" (...) e representa uma consistente renovação dos quadros", diz a tutela.
72
horas: é o prazo que os professores colocados têm para se apresentarem nas escolas. Primeiro têm de confirmar que aceitam no sistema de gestão de recursos humanos da educação. Quem tiver impedimentos, tem cinco dias para justificar.